29 de julho de 2024

Histórias do Fim do Mundo de Murakami

map Haruki Murakami
THE MAP OF END OF THE WORLD
Town map based on Haruki Murakami's novel
Hard-Boiled Wonderland and the End of the World
世界の終りとハードボイルド・ワンダーランド


BURACO PURO

– Para que serve aquele buraco? – perguntei ao Coronel.

– Para nada respondeu, enquanto levava a colher à boca. Estão a cavar por cavar. Nesse sentido, trata-se de um buraco puro.

– Não percebo.

– É muito simples. Apeteceu-lhes fazê-lo, é a única razão.

Mastiguei o pão enquanto refletia naquela ideia de buraco puro.

– De vez em quando, cavam um buraco explicou o ancião. Pode bem ser que, no fundo, se compare à minha paixão pelo xadrez. Não tem sentido, não leva a lado nenhum, mas isso não interessa nada. Aqui, nós abrimos um buraco atrás do outro. São atos sem finalidade, esforços sem progresso, passos que não conduzem a lado nenhum. Não achas maravilhoso? Ninguém fica ferido, ninguém fere ninguém. Ninguém passa à frente de ninguém ou fica para trás. Sem vitória, sem derrota.

– Acho que percebo.

O ancião, depois de assentir várias vezes com a cabeça, inclinou o prato e recolheu o último pedaço de estufado. 

–Talvez haja na Cidade coisas que te pareçam estranhas. Mas, para nós, é tudo muito natural. Natural, puro e pacífico. Tenho a certeza de que, um dia, tu também o compreenderás. Espero que sim. Fui militar durante muito tempo, e não me arrependo. A meu modo, tive uma vida feliz. O cheiro a pólvora e a sangue, o relampejar dos sabres, o toque dos clarins: ainda hoje recordo tudo isso muitas vezes. Contudo, não consigo recordar-me do que nos empurrava para a luta: a honra, o patriotismo, a combatividade, o ódio, esse tipo de coisas. Neste momento, talvez tenhas medo de perder o teu coração. Eu também receei pelo meu. Não tens de te envergonhar disso. – Interrompeu-se por instantes, à procura de palavras, com o olhar vago. No entanto, quando perderes o teu coração, a tua alma encontrará a paz. Uma paz tão profunda como nunca sentiste. Lembra-te do que te digo.

Assenti em silêncio.

Haruki Murakami, O impiedoso país das maravilhas e o fim do mundo (Lx: CdL,1985. 30: 449-450)

24 de julho de 2024

Castelos semeados em fundo vermelho

Tabardo e colar de Rei de Armas séc. xviii

Cumpriu-se no passado 27 de março o 775.º aniversário da conquista de Faro, a Santa Maria al-Harum dos mouros berberes do Califado dos Almóadas. Até ao final desse ano, seguir-se-ia a tomada de posse de Loulé, Aljezur, Porches e Albufeira, pequenos enclaves resistentes do Reino do Algarve. Diz-se por aí, à boca cheia e grande convicção triunfalista, pertencerem algumas destas praças ao elenco das representadas nos castelos do brasão de armas real e atual bandeira nacional. A escolha final da lista é difícil de fixar, porque qualquer que ela seja estará sempre a falsear a verdade. A História tem outras histórias bem diferentes para contar.

Rezam os anais que até nós chegaram ter o filho segundo de D. Afonso II inserido um número variável de flores-de-lis e castelos no seu brasão pessoal, por estar casado com Matilde de Bolonha e ser filho de Beatriz de Castela. A adoção deste distintivo heráldico (1238) significa que, muito antes da sua ascensão ao trono português (1248) e da posse efetiva do Algarve (1249), D. Afonso III já usava como insígnia distintiva própria de poder senhorial uma semeadura variável de castelos amarelos numa bordadura vermelha, depois agregada ao brasão real, como quebra ritual de escudos e diferença de armas, decorrente da deposição papal do irmão D. Sancho II.

Armas de D. Afonso III
Conde de Bolonha & Rei de Portugal e Algarve
 

Ao que se sabe, as antigas taifas de Silves, Tavira e Santa Maria nunca dispuseram de nenhum brasão próprio, enquanto entidades autónomas/unificadas do Gharb al-Andaluz do Califado de Córdoba e do Império Almorávida ou da Coroa do Portugal. Os castelos e cabeças de reis muçulmanos e cristãos que aparecem nos antigos armoriais nacionais mais não são do que meras fantasias por vezes seguidas como fidedignas nos nossos dias. Tradições que regra geral se esquecem da rutura causada pela troca de cetros d'O Capelo pel'O Bolonhês ou da natureza tão-somente nominal do designado Reino do Algarve/Algarves d'Aquém e d'Além Mar em África.

NOTA
Neste mesmo 24 de julho, mas de 1245, em que o Conde Bolonha assumiu o título de Dom Afonso de Portugal, Visitador, Curador e Defensor do Reino.

19 de julho de 2024

Fromage à raclette & pommes de terre

Raclette - Bratchäs - Bratkäse

Reza a lenda, que corre de boca em boca, ter um pedaço de queijo caído inadvertidamente num fogo de lenha que começou a derreter. As mãos descuidadas que o tinham deixado escapar retirou-o tal como pôde das brasas, derramou-o sobre as batatas cozidas que tinha no prato e provou a iguaria assim obtida. Ao que parece, la raclette à fromage valaisan fondu et pommes de terre en robe des champs estava inventada. Nasceu no cantão suíço do Valais, mas rapidamente passou as fronteiras helvéticas e se instalou nos hábitos culinários dos países limítrofes.

Descobri este manjar dos deuses numas férias verão já distante dos anos 70/80 na Bretanha, muito embora se aconselhe fazê-lo nos meses frios de inverno. Continuamos cá em casa a fazê-lo com alguma frequência com um aparelho elétrico adquirido numa grande superfície de Rennes. A grande dificuldade que se vivia então era a inexistência entre nós do queijo adequado exigido à preparação. Trouxemo-lo muitas vezes de França e outras mais de Espanha, até surgirem em alguns os supermercados nacionais. A entrada na CEE de então facilitou a função gastronómica.

A degustação pantagruélica faz-se nos dias de hoje com o recurso a outras gulodices mais ou menos calóricas. A charcuterie variada ocupa um primeiríssimo plano, logo seguida duma vasta gama de crudités. Tudo ao gosto dos comensais sentados à volta duma mesa familiar preferencialmente redonda. O fendant du valais suíço difícil de encontrar pode facilmente ser substituído por um vinho leve português ou um qualquer outro branco/verde servido bem gelado para refrescar devidamente o festim. Les petits plaisirs de la vie qui aident à avoir le paradis sur terre. Voilà !       

FENDANT DU VALAIS

16 de julho de 2024

Sentidos consentidos

PERPÉTUAS-DAS-DUNAS

Sentado numa cadeira de abrir/fechar na praia da Alagoa em Altura, sinto o sol a tatear-me as partes do corpo expostas à natura, livres de vestuário e protegidas por um finíssimo filtro solar 50+ fabricado num centro termal com pedigree do além-Pirenéus. Os raios do astro-rei a traçarem uma rosa-dos-ventos completa: norte, sul, este, oeste.

O meu olhar daltónico vislumbra um mar pintado de azul vivo na lonjura do horizonte meridional, esverdeado a meia distância do meu ângulo de visão e a desvanecer-se na transparência translúcida, sem cor definida, antes de se transformar no branco total da mexida rebentação das miniondas no areal dourado junto aos meus pés.

Paira no ar um perfume intenso emanado das perpétuas-das-areias, trazido até mim por uma ligeira brisa setentrional a soprar sobre a imensidade das dunas estendidas ao longo do sotavento algarvio. Fragrâncias suaves a misturarem-se com o leve olor a maresia que se faz sentir bem à beira-mar onde estrategicamente me deixo estar.   

Dum lado e doutro, ouve-se o refrão das bolas-de-berlim, a aguçar o palato de miúdos e graúdos. Com creme ou sem creme e sempre com muito açúcar. Resiste-se ou sucumbe-se. Uma por ano ou por semana, é como o Melhoral, não faz bem nem faz mal. Os sentidos consentidos agradecem e suspiram por mais. Talvez sim, talvez não.

12 de julho de 2024

Virginia Woolf e as singularidades biográficas de Lord/Lady Orlando

“Memory is the seamstress, and a capricious one at that. Memory runs her needle in and out, up and down, hither and thither. We know not what comes next, or what follows after. Thus, the most ordinary movement in the world, such as sitting down at a table and pulling the inkstand towards one, may agitate a thousand odd, disconnected fragments, now bright, now dim, hanging and bobbing and dipping and flaunting, like the underlinen of a family of fourteen on a line in a gale of wind.”

Entrei no universo imagético de Virgínia Woolf duas décadas e de modo indireto. Fi-lo através das longas e iteradas alusões ao Orlando: uma biografia (1928), traçadas nas seis dezenas e meia de páginas dum conto de Lídia Jorge sobre o desejo, cujo nome partilha com a antologia que o aloja, «O Belo Adormecido» (2004). Deste primeiro contacto com o icónico romance da ficcionista britânica, vieram-me de imediato à mente ecos remotos doutros relatos igualmente centrados num insólito virado para a esfera explícita do maravilhoso puro, com um destaque especial para os cenários sobrenaturais pintados por Oscar Wilde no Retrato de Dorian Gray. Um encontro fortuito com uma edição de bolso dum dos textos pioneiros da pós-modernidade europeia permitiu-me conhecer a história singular desse/a lord/lady sui generis, nascido/a nos finais da era isabelina e ainda vivo/a e de boa saúde à data da publicação do livro. Tinha então 36 anos de idade e testemunhara a substituição dinástica dos Tudor pelos Stuart, na passagem da centúria de quinhentos para a de seiscentos, e ter atravessado como se nada fosse a república efémera instituída pelo Protetorado Britânico e os sucessivos reinados dos Hanôver, Saxe-Coburgo-Gota e Windsor.

O caráter prodigioso no trajeto existencial do biografado capaz de impressionar os leitores está, pois, ancorado em dois polos axiais que percorrem os seis capítulos da crónica: a mudança enigmática de sexo do aristocrata inglês e a sua misteriosa longevidade de mais de 300 anos bem contados. Tudo acontece dum modo inesperado e sem obedecer a uma regra espectável de causa-efeito. As varinhas de condão dos contos tradicionais estão ausentes na totalidade da sua tessitura textual. Tudo se passa com a maior tranquilidade. A barreira racional entre o natural e o sobrenatural só se verifica fora da mancha gráfica do livro. No seu interior tudo é possível e aceite sem reboliços. A beleza e graciosidade masculina/feminina não é retratada numa tela como o fez o dramaturgo e romancista irlandês já referido. Tão pouco recorre a uma pele de onagro para satisfação dos desejos do seu proprietário, como Balzac idealizou em La peau de chagrin (1831), ou duma campainha mágica capaz de eliminar à distância um riquíssimo funcionário chinês, como Eça de Queiroz gizou n'O Mandarim (1880). As palavras escritas são mais do que suficientes para a criadora inglesa em apreço. A alotopia instala-se lentamente na fábula e mantém-se de pedra e cal até ao seu derradeiro ponto final.

O mundo alternativo plasmado nesta resenha memorialista, aquele que nos permite aceitar que a nossa condição de seres viventes é diferente daquilo que é, ou seja, que se pode passar por artes de berliques e berloques desconhecidos da condição de homem para a de mulher, sem recorrer a nenhuma intervenção cirúrgica e terapia hormonal, ou de manter uma eterna juventude, sem se submeter à voragem insaciável dos dias, semanas, meses, anos e séculos. O senso comum obriga-nos a separar os eventos trazidos à colação num duplo fluxo temporal da realidade factual e do imaginário fictício. Os sucessivos espíritos de época sucedem-se paulatinamente uns aos outros, modelando simultaneamente o perfil do protagonista na dimensão cronotópica desenhada pela História e pela Literatura. A verdade, a franqueza e a honestidade, o vício, o crime e a miséria, o amor, nascimento e morte tidos pelas pessoas anónimas/nomeadas coetâneas dos reis e rainhas, nobres e plebeus, amos e serviçais, funcionam como autênticos mestres da personagem desenhada com engenho e arte pela entidade demiúrgica que lhe deu vida nas laudas impressas duma efabulação de faz-de-conta.

As aventuras e desventuras, as conquistas e derrotas, as viagens e pousadas, recebidas, descritas e vividas em ambientes urbanos e rurais, constituem as peças-chave com que se vai erigindo o percurso labiríntico do/a herói/heroína da trama. Jornal fingido de múltiplas leituras, nem sempre claras, é considerado pelos seus exegetas como o produto diegético mais acessível composto pela sua artífice. Avaliação difícil de confirmar por quem não conhece a totalidade da sua obra, como é o meu caso. Não descarto a hipótese de preencher esta lacuna, caso detete algum título seu numa próxima visita a uma livraria. A ver vamos. Entretanto, não me coíbo de expressar a minha vontade de ver a performance de Tilda Swinton no écran (1992), gorada que está, a possibilidade de ver a de Isabelle Huppert no palco (1993), atrizes aludidas por Lídia Jorge na mise en abyme literária referida. As intenções estão tomadas. Assim os fados que nos dizem dirigir os passos me permitam concretizá-los quando para aí estiverem voltados.

8 de julho de 2024

Filhos & Pecadores

O Pecado Original e a Expulsão do Paraíso
Michelangelo Buonarroti, Vaticano - Cappella Sistina, 1508-1512 
O Senhor Deus disse: «Eis que o homem, quanto ao conhecimento do bem e do mal, se tornou como um de nós. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre.»
O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual foi tirado. Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do Éden, os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.
Génesis. 3, 22-25

Era uma vez um deus sem nome que, para ocupar o tempo que não lhe faltava, resolveu criar um jardim pessoal e entregá-lo de guarda ao homem, um ser semidivino feito com barro amassado em água e animado com o sopro divino do demiurgo. Foi-lhe porém vedado o pomo do conhecimento, o que não se coibiu de infringir e sofrer as consequências, ser expulso do vergel que lhe havia sido confiado por ter cometido o designado pecado original.

Era uma vez um herói tebano que matou o pai e casou com a mãe. Subiu ao trono vago da cidade órfã do rei caído às mãos do filho e originou uma das tragédias áticas mais modelar da paideia grega antiga. O novo tirano tinha os dias e as noites contados pela poder punitivo do pai dos deuses olímpicos. Os erros juvenis conscientes cometidos pelo soberano assassinado deveriam ser assumidos na íntegra pelos atos inconscientes do herdeiro real.

Era uma vez um filho-do-vulgo que ideou ser um filho-de-algo, apesar do pai ser um mero presidente eleito duma res publica secular. Como infante lusitano ou príncipe real que julgava ser, começou a exercer um forte tráfico de influências em nome do progenitor, que conduziria a um resultado inesperado e um desfecho desconhecido. O pai virou-lhe as costassacudiu a chuva do capote e sem dó nem piedade arremessou todas as culpas para o filho.

Se na transgressão bíblica, o pecado original recai sobre os pais, que o legam aos filhos; se na hybris helénica, a perversidade do pai recai sobre o filho, que não a transmite a ninguém; no caso atual, o abuso do filho é delatado pelo pai que o incrimina de tudo. Cá se fazem se pagam. Amigos amigos, negócios à parte, ou, como sói dizer-se, quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão. E assim se gizam os mitos, as lendas e as histórias.

ADÃO E EVA NO PARAÍSO
(Painel de colmeia séc. xix)

2 de julho de 2024

Sinestesias gustativas

CLARA PEETERS
Stilleven met kazen, artisjokken en kersen, c. 1625
[Los Angeles, LACMA]

Gostos, Paladares, Sabores, Gulodices

tantos queijos franceses como dias tem o ano. Dizem. Não me custa a acreditar que assim seja ou que até os ultrapasse. Basta visitar uma crèmerie local para o confirmar. Os guias gastronómicos que os elencam, descrevem e localizam, dão-lhes também um nome próprio e um apelido de família, excedendo facilmente a barreira das três centenas de designações distintas, distribuídas pelos plateaux de fromages à base de lait de vache, de chèvre et de brebis.

O número de queijos portugueses é de longe menor. Na infância, cheguei a pensar que o cardápio se reduzia a três únicos casos: Saloio, Merendeira e Flamengo. Mais tarde descobri os gostos, paladares, sabores e gulodices do Serra, Ilha e Azeitão, ampliados depois com a concorrência cerrada do Serpa, Nisa, Castelo Branco e alguns mais. Um manjar dos deuses de fazer crescer água na boca, um estímulo para o palato e demais órgãos dos sentidos.

A fusão de duas ou mais sensações na presença de algumas iguarias comestíveis tem o condão de aguçar o apetite incontrolável próximo da gula. Para os apreciadores, o queijo tateia-se com o nariz, saboreia-se com os odores que exala, admira-se com os olhos que o devora, provoca a salivação só de ouvir soletrar o nome de alguns deles, antecipa todos os prazeres do paraíso, mal toca o céu-da-boca. Sinestesias gustativas difíceis de traduzir por palavras.

Leon-Paule Faque refere-se ao Camembert, como o queijo que cheira aos pés do bom deus. Imagino o que diria este poeta sobre o Munster da Alsacia-Lorraine. Decerto o mesmo que terá pensado uma passageira de autocarro sentada ao meu lado num percurso de Lisboa-Faro, quando os calores de julho lhe fizeram chegar ao nariz os vapores exalados por um exemplar que eu comprara numa loja gourmet da capital e depositara piamente debaixo do banco.

Gostos, paladares, sabores e gulodice não se discutem ou partilham. O tópico triângulo pão-queijo-vinho só se aplica a alguns. Tal como o recurso aos pimentos amarelos, tomates vermelhos, uvas de todas as cores, aipo, alcachofras e cerejas. Iguarias para delícia da vista-boca-mãos-ouvidos-nariz de quem as enxerga, mastiga, toca, escuta e cheira, a dizerem a uma só voz de sua justiça no prato onde são postos, para serem desfrutados com todos os sentidos.