8 de julho de 2024

Filhos & Pecadores

O Pecado Original e a Expulsão do Paraíso
Michelangelo Buonarroti, Vaticano - Cappella Sistina, 1508-1512 
O Senhor Deus disse: «Eis que o homem, quanto ao conhecimento do bem e do mal, se tornou como um de nós. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre.»
O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual foi tirado. Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do Éden, os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.
Génesis. 3, 22-25

Era uma vez um deus sem nome que, para ocupar o tempo que não lhe faltava, resolveu criar um jardim pessoal e entregá-lo de guarda ao homem, um ser semidivino feito com barro amassado em água e animado com o sopro divino do demiurgo. Foi-lhe porém vedado o pomo do conhecimento, o que não se coibiu de infringir e sofrer as consequências, ser expulso do vergel que lhe havia sido confiado por ter cometido o designado pecado original.

Era uma vez um herói tebano que matou o pai e casou com a mãe. Subiu ao trono vago da cidade órfã do rei caído às mãos do filho e originou uma das tragédias áticas mais modelar da paideia grega antiga. O novo tirano tinha os dias e as noites contados pela poder punitivo do pai dos deuses olímpicos. Os erros juvenis conscientes cometidos pelo soberano assassinado deveriam ser assumidos na íntegra pelos atos inconscientes do herdeiro real.

Era uma vez um filho-do-vulgo que ideou ser um filho-de-algo, apesar do pai ser um mero presidente eleito duma res publica secular. Como infante lusitano ou príncipe real que julgava ser, começou a exercer um forte tráfico de influências em nome do progenitor, que conduziria a um resultado inesperado e um desfecho desconhecido. O pai virou-lhe as costassacudiu a chuva do capote e sem dó nem piedade arremessou todas as culpas para o filho.

Se na transgressão bíblica, o pecado original recai sobre os pais, que o legam aos filhos; se na hybris helénica, a perversidade do pai recai sobre o filho, que não a transmite a ninguém; no caso atual, o abuso do filho é delatado pelo pai que o incrimina de tudo. Cá se fazem se pagam. Amigos amigos, negócios à parte, ou, como sói dizer-se, quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão. E assim se gizam os mitos, as lendas e as histórias.

ADÃO E EVA NO PARAÍSO
(Painel de colmeia séc. xix)

2 de julho de 2024

Sinestesias gustativas

CLARA PEETERS
Stilleven met kazen, artisjokken en kersen, c. 1625
[Los Angeles, LACMA]

Gostos, Paladares, Sabores, Gulodices

tantos queijos franceses como dias tem o ano. Dizem. Não me custa a acreditar que assim seja ou que até os ultrapasse. Basta visitar uma crèmerie local para o confirmar. Os guias gastronómicos que os elencam, descrevem e localizam, dão-lhes também um nome próprio e um apelido de família, excedendo facilmente a barreira das três centenas de designações distintas, distribuídas pelos plateaux de fromages à base de lait de vache, de chèvre et de brebis.

O número de queijos portugueses é de longe menor. Na infância, cheguei a pensar que o cardápio se reduzia a três únicos casos: Saloio, Merendeira e Flamengo. Mais tarde descobri os gostos, paladares, sabores e gulodices do Serra, Ilha e Azeitão, ampliados depois com a concorrência cerrada do Serpa, Nisa, Castelo Branco e alguns mais. Um manjar dos deuses de fazer crescer água na boca, um estímulo para o palato e demais órgãos dos sentidos.

A fusão de duas ou mais sensações na presença de algumas iguarias comestíveis tem o condão de aguçar o apetite incontrolável próximo da gula. Para os apreciadores, o queijo tateia-se com o nariz, saboreia-se com os odores que exala, admira-se com os olhos que o devora, provoca a salivação só de ouvir soletrar o nome de alguns deles, antecipa todos os prazeres do paraíso, mal toca o céu-da-boca. Sinestesias gustativas difíceis de traduzir por palavras.

Leon-Paule Faque refere-se ao Camembert, como o queijo que cheira aos pés do bom deus. Imagino o que diria este poeta sobre o Munster da Alsacia-Lorraine. Decerto o mesmo que terá pensado uma passageira de autocarro sentada ao meu lado num percurso de Lisboa-Faro, quando os calores de julho lhe fizeram chegar ao nariz os vapores exalados por um exemplar que eu comprara numa loja gourmet da capital e depositara piamente debaixo do banco.

Gostos, paladares, sabores e gulodice não se discutem ou partilham. O tópico triângulo pão-queijo-vinho só se aplica a alguns. Tal como o recurso aos pimentos amarelos, tomates vermelhos, uvas de todas as cores, aipo, alcachofras e cerejas. Iguarias para delícia da vista-boca-mãos-ouvidos-nariz de quem as enxerga, mastiga, toca, escuta e cheira, a dizerem a uma só voz de sua justiça no prato onde são postos, para serem desfrutados com todos os sentidos.