23 de dezembro de 2025

Natal e os pés gelados de Pessoa

Chove. É dia de Natal

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa, Cancioneiro: uma antologia (2013)

17 de dezembro de 2025

Presépio dinâmico & presépio estático

PRESÉPIO
1. Estrebaria, estábulo.
2. Nicho ou construção que se arma nas festas católicas de Natal e Reis, representando geralmente o estábulo onde terá nascido Jesus Cristo.
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Assim que começavam as férias natalícias, principiava a tarefa anual de armar o presépio de casa. Numa ida a um pinhal estremenho, eu e o meu irmão recolhíamos o musgo necessário para cobrir o tampo da mesa onde se estenderiam os campos daquele país inventado. Com meia dúzia de seixos apanhados à beira-mar e um punhado de areia das dunas, erguíamos as montanhas e traçávamos os caminhos a perder de vista no nosso imaginário infantil. A terminar, pegávamos nas pratas de embrulhar chocolate e transformávamo-las em rios agitados, cascatas saltitantes e lagos tranquilos de faz-de-conta.

A passagem da paisagem natural para a humanizada fazia-se com as figuras de barro comprados na praça da fruta, religiosamente embrulhadas em papel de jornal e guardadas, ano após ano, num recanto protegido do sótão, dentro dum caixote de madeira. Depois era só dispor a preceito cada um deles no local mais adequado do espaço cénico levantado. O pai, a mãe e o recém-nascido no centro do nicho simbólico, rodeados da vaca e do burro, dos pastores visitantes e respetivos rebanhos visitantes. Tudo o mais era fruto da imaginação que os oleiros da região punham à nossa disposição.

Caminhando a passo lento e por entre o casario envolvente, os três Reis Magos lá se iam deslocando até à gruta estrelada de Belém. O afastamento do castelo altaneiro, colocado na parte mais recôndita daquela representação plástica do nascimento de Jesus de Nazaré, era marcado, dia após dia, pelo movimento milimétrico dos camelos inseparáveis de Belchior, Gaspar e Baltasar. É que alguém havia de os ajudar a transportar o ouro, o incenso e a mirra que tinham carregado tão devotamente desde o remoto Oriente para oferecer ao anunciado Messias Salvador do Mundo há tanto tempo esperado.

O meu presépio dinâmico de antanho transformou-se no presépio estático de hoje em dia. Foi dado o devido descanso aos camelos dos adoradores do Rei dos Judeus. Estes encontram-se de joelhos junto à sagrada família, na companhia dum casal de pastores, três ovelhas e um anjo protetor. Catorze figuras do meu presépio atual, comprado a preço justo numa loja de artesanato tradicional latino-americano. Talvez incas, maias ou astecas. Para o caso tanto faz. Cumprem o mesmo efeito simbólico que os portugueses e nem precisam de musgo do campo, areia do pinhal ou seixos do mar para brilhar.

11 de dezembro de 2025

Bacalhau com todos...

Bacalhau, batata e couves
Settembrini, gekleidet wie immer, saß gegen Ende des Festessens eine Weile mit seinem Zahnstocher am Tische der Vettern, hänselte Frau Stöhr und sprach dann einiges über den Tischlersohn und Menschheitsrabbi, dessen Geburtstag man heute fingiere. Ob jener wirklich gelebt habe, sei ungewiß. Was aber da mals geboren worden sei und seinen bis heute ununterbrochenen Siegeslauf begonnen habe, das sei die Idee des Wertes der Einzelseele, zusammen mit der der Gleichheit gewesen, — mit einem Worte die individualistische Demokratie.

Almoços, Lanches & Jantares

Na era pós-pós-modernista, o Natal passou a ser celebrado entre os estertores do Verão de São Martinho e o Dia de Reis. As iluminações urbanas são inauguradas com pompa e circunstância, as montras das lojas são decoradas com esmero, os Christmas carols cantados em inglês invadem o espaço público. Não nada a fazer senão viver o espírito natalício enquanto a quadra durar.

Entrado o mês de dezembro, começa a dança dos almoços, lanches e jantares de natal, e o fiel amigo está presente em todos as ementas. Bacalhau com natas, com broa, com espinafres. não me foi dado ver em nenhuma o bacalhau com todos: cozido com batatas, couves, ovo e regado com azeite virgem. Esse talvez tenha de esperar pela consoada, se a ceia tradicional assim ditar.

O grupo coral onde canto, o ginásio onde faço Pilatos e a academia sénior onde dou umas aulas pro bono não se deixaram ficar para trás nesta nova tradição feita de faca e garfo à volta dum prato de bacalhau. Será uma semana inteira a celebrar o incerto nascimento do tal filho da carpinteiro e rabino da humanidade, que, segundo Thomas Mann, fingimos ter sido naquele dia.

Após a abertura das prendas (que as crianças deixaram de acreditar ser uma dádiva do Pai Natal ou do Menino Jesus), o bacalhau sai de vez das mesas portuguesas. No Ano Bom os menus mudam de figura. Os pinheiros enfeitados continuam de pé mas o réveillon toma conta dos eventos. O espumante e as passas entram em cena e lá ao longe se vislumbram as serpentinas do Carnaval.    

Bacalhau do Atlântico
Impressão artística Giclée
EPÍGRAFE
Settembrini, vestido como sempre, sentou-se, perto do fim do jantar de festa, por um instante, com o seu palito de dente, à mesa dos primos, meteu-se com a Sra. Stöhr e disse, depois, algumas coisas sobre o filho do carpinteiro e rabino da humanidade, cujo dia de aniversário se fingia ser naquele dia. Era incerto se Ele verdadeiramente existira. Mas o que então nascera, e o que iniciara a sua ininterrupta marcha triunfal até aos nossos dias, era a ideia do valor da alma individual, juntamente com a ideia de igualdade — numa palavra, a democracia individualista.
Thomas Mann, A Montanha Mágica (1924)

5 de dezembro de 2025

Garrett no rasto existencial de Camões

A índole deste poema é absolutamente nova; e assim não tive exemplar a que me arrimasse, nem norte que me seguisse Por mares nunca d'antes navegados.

Onde jaz, Portugueses, o moimento
Que do imortal cantor as cinzas guarda?
Homenagem tardia lhe pagastes
No sepulcro sequer... Raça d’ingratos!
Nem isso! nem um túmulo, uma pedra,
Uma letra singela! - A vós meu canto,
Canto de indignação, último acento
Que jamais sairá da minha lira,
A vós, ó povos do universo, o envio.
Ergo-me a delatar tamanho crime,
E eterna a voz me gelará nos lábios.
Lira da minha pátria onde hei cantado
O lusitano - envilecido - nome,
Antes que nesse escolho, em praia estranha,
Quebrada te abandone, este só brado
Alevanta final e derradeiro:
Nem o humilde lugar onde repoisam
As cinzas de Camões, conhece o Luso.

Dizem os manuais literários ter o Romantismo sido introduzido entre nós precisamente 200 anos. O feito é atribuído a Almeida Garrett, ao publicar anonimamente, na Livraria Nacional e Estrangeira de Paris, o poema lírico-narrativo de feição anticlássica CamõesO grande vulto das letras portuguesas oitocentistas encontrava-se à data exilado na capital francesa, perseguido pelo regime absolutista então vigente no país, explicando assim o caráter assumidamente clandestino da editio princepsvendida por subscrição pública, como sendo uma obra proibida dum autor proscrito. O prefácio que a acompanhava referia ter sido redigida em janeiro do ano anterior, impressa nos dois meses seguintes e saído dos prelos em forma de livro a 22 de fevereiro de 1525. Todavia, a visibilidade dos dez cantos em verso branco e notas clarificadoras, inspirados na etapa final de vida do aedo épico d'Os Lusíadas, só seria alcançada em datas  posteriores, correspondentes às reedições de 1839, 1844 e 1854, todas elas revistas e alteradas profusamente pelo seu criador.   

«A ação do poema é a composição e publicação dos Lusíadas; os outros sucessos que ocorrem são de facto episódicos, mas fiz por os ligar com a principal ação»Assim resume o jovem bardo em poucas palavras preambulares o tecido diegético orientador da sua crónica camoniana. Poucas mais poderíamos registar sem correr o risco de entrar abusivamente no corpo poético do testemunho prestado ao urdidor do livro matricial maior das letras nacionais. Digamos, mesmo assim, tratar-se de duas histórias paralelas, fautora da aproximação simbólica do destino nefasto de Camões ao de Garrett. O primeiro, ao regressar pobre a um país em crise profunda, em via de se perder na aventura insana de Dom Sebastião em Alcácer-Quibir (1578). O segundo, na condição de exilado na Europa, por motivos políticos provocados pela Vilafrancada (1823), a insurreição liderada pelo infante rebelde Dom Miguel.

Continuando sem abusar do transcrição de extratos mais ou menos longos de Garrett, é difícil de evitar a transcrição da declaração de princípios genéricos documentada na prefação à edição inaugural da obra, quando averte os potenciais leitores: «Não sou clássico nem romântico; de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma) e por isso me deixo levam minhas ideias boas ou más...». E assim terá feito, quando substitui o número fixo de versos por estrofe pelo variável do chamado parágrafo poético. A revolta individual do versejador contra as regras típicas do nova escola literária marca assim a sua presença não se inibindo, porém, de seguir o princípio isométrico da sucessão regular de decassílabos heroicos não rimados. Neste compromisso de conciliar a tradição greco-latina desenvolvida n'Os Lusíadas com as nascentes tendências europeias ensaiadas no Camões, o seu arquiteto imprime ao Poema o aspeto formal duma epopeia clássica com um conteúdo nacional romântico.

Entre as muitas tiradas pessoais dum eu enunciativo, proferidas por um narrador extradiegético identificado com o próprio autor, e um outro eu poético atribuído ao herói épico ficcionado, a evocação das vidas similares dum e doutro conduz-nos do primeiro ao derradeiro verso do texto semifactual/semifantasista, com um relevo especial a todos as prefações e notas de rodapé e final de livro. No ano em que se cumprem os 500 anos do nascimento de Luís de Camões, não deixa de ser curioso associá-lo ao bicentenário da publicação da obra que abriu as portas ao Romantismo literário no nosso país. Almeida Garrett não deixou nenhum escrito explícito a assinalar a coincidência destes dois eventos, a vinda ao mundo do Poeta em 1525 e a publicação do Poema a si dedicado em 1825. Mas, mesmo assim, não será demais assinalá-la agora, quando mais não seja para relembrar, através das letras, a memória de ambos, e enviá-la depois lá para o Parnaso, onde residem lado a lado com toda a honra e glória merecidas.       

1 de dezembro de 2025

O país das laranjas & o pais dos coelhos

LARANJA

Laranja, s. Do persa nārang (por sua vez do sânscrito nāranga) pelo ár. nāranjâ, mesmo sentido; cf.: esp. naranja, galego laranja. Este dualismo hispânico (laranja-naranja) faz-me hesitar quanto ao caso port.: trata-se da evolução ár. nāranjâ < port. laranja, ou, talvez antes, de port. laranja < ár. vulgar nāranâ? Esta última forma é nome de unidade de laranj, muito espalhado pelos dialetod ocidentais...
J. P. Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa,  Lx. Horizonte: 1977 (III, 386b)

Os mitos e lendas greco-latinos localizaram o Jardim das Hespérides nas terras do fim do mundo junto ao grande mar Oceano. Os Pomos de Ouro ali existentes passaram com o tempo a confundir-se com as Laranjas. Provavelmente as amargas, porque as doces parece terem sido introduzidas/inventadas pelos habitantes históricos ali instalados, sobretudo na parte mais ocidental da península. Alguns passaram então a chamar-lhes Portugal ou «Terra das Laranjas».

Inspirados nesse diz que diz enriquecido pela mitologia helénica, portokáli, portocálâ, portokal' e portokal passaram a designar LARANJA em grego, romeno, búlgaro e turco. O exemplo foi depois seguido por outras línguas faladas fora das fronteiras europeias, tais como o arménio, georgiano, afegão ou iraquiano. Até a vintena de países árabes (os introdutores do fruto na península), o fazem no seu dia a dia, registando برتقال e pronunciando bortugal ou burtugálum.

Os mitos e contramitos fenícios não tiveram a mesma sorte neste rincão distante da Ibéria a que chamaram Span ou Spania, que, através da terminação I-shphanim, remeteria para um mamífero roedor da família dos hiracoides ali existentes em grande quantidade. À falta dum nome mais adequado para identificar esse território obscuro onde o sol se punha no final do dia, batizaram-no de «Terra dos Coelhos». A denominação Hispânia viria mais tarde por via latina, derivando depois para Espanha.

No Primeiro de Dezembro de 1640 o País das Laranjas venceu o Pais dos Coelhos. Dizem por aí que o primeiro se libertou da tutela do segundo, ou que recuperou mesmo a sua independência. Bocas. Os Habsburgos coroados caíram e os Braganças levantaram-se. Sai um primo entra outro primo. Castelhanos/Portugueses ou vice-versa. Tudo farinha do mesmo saco. Os herdeiros de Carlos Quinto de Gand e de Isabel de Portugal revezaram-se no poder.

Os festejos da restauração monárquica portuguesa foram breves, sendo logo substituídas pelas fanfarras dos exércitos hispânicos. A Guerra da Aclamação duraria 28 anos a que se seguiram alguns conflitos mais em períodos intermitentes. Até houve uma Guerra das Laranjas ainda viva em Olivença por palavras ditas/reditas nos dois lados da raia. Questiúnculas antigas de irmãos/hermanos desavindos e sempre de braços abertos para o restabelecimento da paz.