«Años más tarde, en su lecho de muerte, el viejo Sempere habría de explicar cómo en aquel instante creyó ver que Andreas Corelli derramaba una lágrima que al golpear la tumba de Cervantes se convirtió en piedra. Supo entonces que sobre aquella roca empezaría a construir un santuario, un cementerio de ideas e invenciones, de palabras y prodigios que crecería sobre las cenizas del Príncipe de Parnaso, y que algún día albergaría la mayor de las bibliotecas, aquella en la que toda obra perseguida o despreciada por la ignorancia y la malicia de los hombres iría a parar a la espera de volver a encontrar al lector que todo libro lleva dentro.
–Amigo Cervantes –dijo al despedirse–. Bienvenido al Cementerio de los Libros Olvidados.»
Carlos Ruiz Zafón, «El Príncipe de Parnaso» IN La ciudad de vapor (2020)
No intervalo de confinamentos quando as livrarias estavam abertas ao público, entrei numa para adquirir a derradeira obra de Carlos Ruiz Zafón, A cidade de vapor (2020), uma compilação póstuma há muito esperada de todos os contos do autor, alguns deles inéditos, acabada de sair com a chancela da Editorial Planeta. Não havia nem a versão original pretendida nem ma quiseram encomendar enquanto durasse a pandemia que ainda anda por aí à solta. Voltei para casa com outro livro debaixo do braço e voltei ao ataque agora pela via da compra indireta em-linha. Recebi-o ao fim de pouco tempo sem problemas de permeio. E aqui está ele ao pé de mim a convidar-me a abri-lo, a folheá-lo, a deliciar-me com as palavras de fantasia que só o seu criador sabia escolher. Inigualáveis, irrepetíveis, incomparáveis.
Lidos os contos e regressado à cidade dos malditos, das névoas e neblinas, das penumbras e nevoeiros, à cidade de vapor, a sensação sentida é a do puro prazer que só experimenta quem tem um amor muito especial pelos livros e pelos universos fingidos feitos à medida do mundo real que pisamos. Neste caso concreto, o criador das fábulas contadas de vidas imaginadas assenta arraial em Barcelona com um pulo rápido a Madrid, num período de tempo que vai desde os Séculos de Ouro dos Áustrias aos dias conturbados da Guerra Civil Espanhola dos Borbones, da II República e da ditadura franquista. Fá-lo num estilo eclético, onde predominam as luzes e as trevas, feito à medida das ficções juvenis de aprendizagem, de contexto histórico, ao jeito gótico de amores, mistérios e aventuras peregrinas, com pinceladas de thriler policial e político, de fantasia pura a roçar o estranho e o maravilhoso, da paródia e do pastiche, do relato dentro do relato. Émile de Rosiers Castellaine, o editor dos textos, considera o estilo zafoniano muito próximo do dickensiano e do borgiano, que podemos observar em mais duma passagem, sem deixar de traçar a sua marca pessoal muito particular. Inebriante, imbatível, indescritível.
Nestes onze fragmentos de dimensão variável, voltamos a tropeçar com atores, cenários e tramas já tratados em momentos anteriores. Por vezes dá-nos a sensação de estarmos na presença de episódios perdidos ou de fácil integração na tessitura narrativa da Trilogia da neblina ou na saga do Cemitério dos livros esquecidos, ou muito próximos da Marina, a obra preferida do autor. O primeiro reencontro é o de David Martín, que nos é apresentado ainda criança e em modo de memórias dum embrionário contador de histórias e protagonista d'O jogo do Anjo. Já com o estatuto de escritor de sucesso fugidio, é citado em forma de epígrafe extraída dum fragmento perdido d'O prisioneiro do Céu, uma das suas obras publicadas. Seguem-se outros nomes familiares da tetralogia, muito embora situados em tempos distintos, como será o caso de dois fazedores de livros, sediados junto à porta de Santa Ana. O quatrocentista Raimundo de Sempere, criador duma biblioteca secreta, verdadeiro labirinto ou cidade do livro, que abrigasse as obras proibidas pelo grande inquisidor Jorge de León; e o seiscentista Antoni de Sempere, editor duma fictícia tragédia em três atos e uma epístola de Miguel de Cervantes, intitulada Um poeta nos infernos. As figuras do irónico Sancho de la Torre e do enigmático signore Corelli completam o quadro. Imparável, incrível, invencível.
O ambiente que vai das páginas inaugurais d'A sombra do vento às derradeiras d'O labirinto dos espíritos, num contínuo de sucessos editoriais sem paralelo que faltaram aos criadores de ficções criados pela ficção do mais bem-sucedido escritor catalão de todos os tempos. O cenário das Ramblas barcelonesas, as referências à Igreja de Santa Maria do Mar ou da Catedral-Basílica Metropolitana da Santa Cruz e Santa Eulália, bem como à catedral de ferro da estação de França, ao templo expiatório da sagrada Família ou ao parque Güell de Antoni Gaudí, à Vía Layetana, ao Barrio de la Ribera ou ao Ensanche não voltarão a servir de palco a mais nenhuma história de Carlos Ruiz Zafón. É tempo de dizer adeus a novos textos deste fabricante por excelência de sucessos literários. Agora só nos resta voltar à companhia dos consagrados, aqueles que pertencerão sempre a um grande Parnaso dos Livros Imortais. Inesquecíveis, indestrutíveis, inolvidáveis.