29 de maio de 2025

Original & Imitação

Um peixinho dourado com barbatana dorsal de tubarão

Não queiras sapateiro tocar rabecão…

Qualidade & Quantidade

Quando os complexos de inferioridade se transformam em complexos de superioridade, a mania das grandezas manifesta-se em toda a sua extensão. Desmesuradamente. A originalidade evapora-se e a imitação explode. Os exemplos não faltam. Pequenos e grandes, antigos e recentes, imprevisíveis e expectáveis. Deixemos os de menor calibre de fora e convoquemos alguns dos mais visíveis. Nascidos numa etapa civilizacional longínqua, desenvolvidos num fluxo civilizacional contínuo e prenúncio duma evolução civilizacional vigente, perdida num horizonte de eventos ignotos, mas cada vez mais próximos do nosso ângulo de visão.

Começando com os Sumérios, não se sabe ao certo de onde vieram nem para onde foram. Provavelmente, quando inventaram a escrita, já teriam esquecido a sua proveniência e acabaram por se diluir no seio dos Acádios semitas. Nem uns nem outros se encarregaram de registar em nenhuma placa cuneiforme estes dados que em nada lhes interessaria documentar. As lendas do rei sumério de Uruk uniram-se na epopeia acádia de Gilgamesh. Estes aproveitaram-se da matéria-prima original, ampliaram-na a seu belo prazer e criaram um género novo que muitos outros depois imitaram, com Homero, Virgílio e Camões à cabeça de todos eles.

Na Idade dos Heróis épicos, Troia foi tomada, saqueada e incendiada pelos Aqueus, após um cerco de dez anos. Eneias consegue fugir e protagonizar um sem número de aventuras por terra e por mar até chegar à anelada península italiana. Aí, estará na origem da fundação lendária de Roma, cidade imperial que posteriormente conquistará toda o Mare Nostrum mediterrânico, incluindo os antigos territórios gregos. Com esta anexação punitiva, a nova senhora incontestável do mundo conhecido tenta demonstrar a alegada superioridade bélica latina sobre a invejada superioridade cultural helénica. Exageros à parte, cá se fazem cá se pagam.

Os eixos do poder mudaram-se para o novo mundo, levando consigo a secular matriz do velho continente. Para a ereção da capital, os seus arquitetos associaram as colunas e pilastras gregas aos arcos e cúpulas romanas. A acumulação desregrada de originais alheios imitados à exaustão encontra o expoente máximo no Capitólio, um misto de templos helénicos e de basílica latina ou dum bolo de noiva com vários andares. A sujeição da qualidade à quantidade, feita à medida do atual inquilino da Casa Branca, a alimentara-lhe o ego e a transformá-lo num lídimo César global, a vencer aos pontos a loucura de Nero, Calígula ou Caracala.

WASHINGTON, THE CAPITOL. (US-D.C.(1891) 

23 de maio de 2025

Quatro onças de ouro anuais pelo reconhecimento papal dum reino

Assinatura de Afonso Henriques na Carta de Couto mosteiro de Tibães 

«Por isso, eu, Afonso, pela graça de Deus Rei de Portugal, prestei homenagem ao Papa, meu Senhor e Pai, nas mãos do Cardeal diácono D. Guido, Legado da Sé Apostólica. Constituo, pois, a minha terra  como censual de S. Pedro e da Santa Igreja de Roma, com o tributo anual de quatro onças de oiro, e disponho de todos quantos, depois da minha morte, obtiverem desta terra, paguem anualmente o mesmo censo a S. Pedro.»
Carta Claves Regni, de D. Afonso Henriques a Inocêncio II (13.12.1143)
«Em seguida, na verdade, tanto por cartas tuas, como intermédio de nosso venerável irmão João, Arcebispo de Braga, prometeste-nos também que tanto tu como os teus herdeiros haveis de pagar anualmente da mesma terra quatro onças de ouro ao Pontífice Romano.»
Carta Devotiam tuam, de Lúcio II a D. Afonso Henriques (1.05.1144)
Para significar que o referido reino pertence a S. Pedro, determinaste como testemunho de maior reverência pagar anualmente dois marcos de oiro a Nós e aos nossos sucessores. Cuidarás, por isso, de entregar, tu e os teus sucessores, ao Arcebispo de Braga pró tempore, o censo que a Nós e a nossos sucessores pertence.
Bula Manifestis probatum, deAlexandre III a D. Afonso Henriques (23.05.1179)

O rei morreu, viva o rei. Assim se dizia nas antigas monarquias e talvez se continue a dizer nas atuais. O mesmo se não pode dizer daquela que rege o mundo católico desde Roma. Entre a morte dum papa e a sua sucessão, há que realizar o obrigatório conclave cardinalício, sepultar solenemente o finado num local condigno do seu estatuto secular/espiritual, esperar a saída do fumo branco da chaminé da Capela Sistina, ouvir o anúncio oficial do nome eleito e proceder ao entronamento do novo soberano com toda a pompa e circunstância exigida pelo protocolo tradicional do Vaticano.

O apelo ditado pela feira de vaidades exige, sem lugar a escusas, que os mais altos dignitários da aldeia global marquem presença nas cerimónias mediatizadas à escala planetária. Reis e rainhas, presidentes e cônjuges, príncipes e princesas juntaram-se na Praça de São Pedro e seguiram ao vivo e a cores a história a acontecer minuto a minuto. Os mais altos dignitários portugueses não faltaram à chamada. Deixaram o dia da Liberdade e o das Eleições para trás e lá se perfilaram ordenadamente nas filas hierárquicas definidas pelo protocolo para serem vistos urbi et orbi.

O Presidente da República dum estado laico e respeitador de todos credos, como o nosso, justificou a presença com os seculares laços de amizade atestado pela Santa Sé para com a terra portucalense, reconhecida em 1179 como Reino soberano. Conversa fiada, dado que os documentos então lavrados nos dizem que a independência nacional passou a custar ao erário público a quantia anual de quatro onças de ouro, o que, ao câmbio moderno, daria algo como 12.000 €. Uma bagatela, mas, mesmo assim, bastante longe desse tal altruísmo esperado da Igreja de Cristo. 

17 de maio de 2025

Habladuras quevedescas

Francisco de Quevedo. Medallón en la Plaza de España de Sevilla

Nadie ofrece tanto como el que no va a cumplir...

Procurei a origem da frase/sentença de Don Francisco de Quevedo y Villegas, mas não a encontrei na Poesia Completa, no Buscón ou nos Sueños. Terá sido registada num outro escrito menos conhecido ou formulado por outras palavras. É bem provável que assim seja ou que a minha pesquisa não tenha sido suficientemente eficaz para a achar.

Tendo em atenção o espírito satírico particularmente apurado d' El Juvenal Español, não ponho grandes reservas à sua autenticidade. Depois, como os ensinamentos que os dias de hoje nos vão dando, considero a pertinência do dito/anexim perfeitamente atual. Pena que assim seja, mas, como sói dizer-se em bom português, contra factos não há argumentos.
 

15 de maio de 2025

Mitos, Lendas & Contos de Fadas

«Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi...»
Génesis 3, 12

A arte de contar histórias terá surgido no preciso momento em que o homem adquiriu a capacidade de traduzir por palavras as imitações de realidades vividas ou imaginadasEsta habilidade de criar mundos paralelos numa fase remota, difícil de precisar, ocorreu na chamada etapa infantil ou animista da humanidade. Terá sido também neste comenos que os deuses e fadas entraram em cena nos mitos, lendas e contos que viriam depois a alimentar as literaturas orais e escritas de todos os povos dispersos pelos quatro cantos da terra.

A arte rupestre gravada e pintada em rochas, cavernas e abrigos pré-históricos, os carateres cuneiformes mesopotâmicos cunhados em placas de argila, os pictogramas hieroglíficos traçados nos papiros egípcios faraónicos, os manuscritos greco-romanos registados em rolos antigos e pergaminhos medievais, mais não são do que o germe dos cantos épicos, dramáticos e diegéticos clássicos, das narrativas sapienciais divinas, das fábulas e histórias da carochinha, impressos ou transmitidos de boca em boca e de geração em geração.

O Pomo de Ouro do Jardim das Hespérides, lançado pela Discórdia à mais bela das três deusas do Olimpo, provocou a rivalidade de todas e a Guerra de Troia. O Fruto Proibido da Árvore da Sabedoria, dado pela Serpente a Adão e Eva, levou à sua expulsão imediata do Paraíso Terrestre. A Maçã Envenenada, oferecida pela Rainha à Branca de Neve, causou-lhe um sono profundo e instantâneo, quebrado pela magia do beijo apaixonado do Príncipe Perfeito, num happy end sempre presente e esperado nos contos de fadas.

Mitos e lendas, epopeias e tragédias, histórias e romances, fábulas e apólogos, contos e parábolas, compostos em verso ou em prosa, são tudo produto duma mesma safra imagética, independentemente da natureza do pomar ou de se tratar dum pomo de ouro, dum fruto proibido ou duma maçã envenenada. A grande diferença é que a Literatura Infantil é a mais abrangente de todas as séries gizadas pela criatividade humana ao longo dos tempos, porque, ao contrário da literatura para adultos, se aplica a todos sem limite de idade.

9 de maio de 2025

O centro e a periferia no dia da Europa

Percursos europeus pela arte da Via Redit

Uma península de penínsulas...

A Europa  conheceu melhores dias para festejar este dia que dizem ser o seu. Também teve piores e conseguiu sempre superá-los e sair por cima como sói dizer-se. foi centro e agora é periferia. Pouco importa, se nos lembrarmos que a terra é redonda e que em todos os quadrantes se está tanto no centro como na periferia.

A profundidade do mundo representado a duas dimensões é-nos dada pela arte pintada num continente que é uma península de penínsulas. Em cada istmo há um ponto de ligação com a faixa de terra menor com a maior a que está ligada. As leis da perspetiva são exímias em marcar as reais dimensões em presença.

Vi na Net um mapa da Europa com a obra de arte mais notável de cada país. As penínsulas limítrofes apontam-nos o centro de todos eles. O Grito de Munch, a Vénus de Milo de Alexandre de Antioquia, O tratador de tartarugas de Hamdi Bey e o Fado de Malhoa. Viva esta unidade na diversidade que no dia de hoje se celebra.

5 de maio de 2025

Del conclave del collegio cardinalizio e dalla fumata bianca all'habemus papam

L'Habemus Papam per l'elezione di Martino V, 1415
[Chronik des Ulrich Richental]
«... Pietro Spano, lo qual giù luce in dodici libelli...»
[Quarta Parte - Cielo del Sole: anime dei saggi, (XII, 45, 2-3)]

Rezam os anais vaticanos ter um dos diletos servos portugueses em Cristo ocupado o trono de São Pedro de 1276 e 1277, num total de 242 dias. Digamos que em 2000 anos de devir histórico se tratar dum número assaz parco. O 187.º Papa recebeu na pia batismal o nome de Pedro Julião, no mundo académico o de Pedro Hispano e no pontifício o de João XXI. Visitei o seu túmulo na catedral de São Lourenço em Viterbo, cidade que o elegera em conclave e o vira finar vítima dum desmoronamento no palácio apostólico onde então residia.

Vistas bem as coisas, se a um cidadão português nascido em Lisboa é dado o apelido de Hispano, o mesmo nos é lícito dizer dum Lusitano nascido em 305 na antiga Egitânia e atual Idanha-a-Velha. É verdade que, à época, a Civitas Igæditanorum ainda integrava a Província da Lusitânia do Império Romano, facto de modo algum impeditivo de considerarmos São Dâmaso como o mais antigo papa português, por ter vindo ao mundo num território nacional, aquele que exerceu as funções de 37.º Sumo Pontífice Católico de 364 a 384.

Um critério similar não podemos aplicar a Maurício Bourdin, eleito papa em 1118 pelos cardeais gibelinos afetos ao Sacro-Imperador Romano-Germânico Henrique V, com o nome de Gregório VIII, depois de ter exercido as funções de Bispo de Coimbra e Arcebispo de Braga, e sido o reorganizador do Condado Portucalense no tempo de Henrique de Borgonha. É que além de ser originário do Limousin, no Ducado da Aquitânia, acabou por ser destituído das suas funções pontifícias em 1121, sendo relegado para a categoria de antipapa.

Os 133 cardeais eleitores preparam-se para nomear em conclave o 269.º Papa da Igreja Católica, entre os quais se contam 4 portugueses aptos a ocupar a Sede Vacante. A chaminé mensageira do escrutínio já está colocada no telhado da Capela Sistina e os mirones habitais começam a colocar-se em lugares estratégicos para testemunhar a passagem da fumata nera para a bianca, conducente à proclamação solene do ritual habemus papam na varanda central da Basílica de São Pedro. A ver vamos, para que depois the show must go on.

EPÍGRAFE
«... Pedro Hispano, cujo espírito, na Terra, brilha nos seus doze livros...»
Dante Alighieri, Divina Comédia - Paraíso, 1321
[Quarta Parte - Céu do Sol: alma dos sábios. (XII, 45, 2-3)]

São Dâmaso I - Gregório VIII - João XXI | August Franzen, Breve História da Igreja