LUÍS DE CAMÕES
(Segurando o livro nas mãos)
Que farei com este livro? (Pausa. Abre o livro, estende ligeiramente os braços, olha em frente.) Que fareis com este livro? (Pausa.)
José Saramago, Que farei com este livro? (1980: II, viii)
Conheço mal a vertente dramática de José Saramago. Dos cinco títulos dados à estampa, só assistira até hoje à representação mental d'A noite (1979). Chegou agora o momento ideal de fazer subir o pano cénico da imaginação e ouvir os diálogos proferidos no palco armado nas páginas impressas da peça Que farei com este livro? (1980). A celebração coincidente dos 100 anos do nascimento do Nobel da Literatura (1998) e dos 450 da publicação d'Os Lusíadas (1572) de Luís de Camões serviram de mote para os chamar conjuntamente à ribalta e lhes render os aplausos merecidos. Nada melhor do que unir o útil ao agradável e encetar uma leitura comentada da peça dum Prémio Camões (1995), precisamente no feriado que assinala o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
Os problemas editoriais, infelizmente, não ficaram restritos ao séc. ⅩⅤⅠ. Mantêm-se presentes nos nossos dias. Saramago lá terá recordado as suas tentativas de tornar públicos os seus primeiros escritos e moveu-os para o caso concreto de Camões, quando se viu com o manuscrito da sua obra maior entre mãos, sem saber muito bem como obteria as licenças e os meios necessários para o fazer. O dramaturgo presta homenagem ao poeta em dois atos e quinze quadros. Dá-lhes uma autonomia relativa, prescinde da presença de cenas de continuidade, intermédias ou de ligação. Localiza a ação em Almeirim e Lisboa, entre abril de 1570 e março de 1572, ou seja, as datas do regresso do aedo a Portugal após uma ausência de 17 anos no Oriente e da primeira impressão d'Os Lusíadas.
Para recontar a história e trazê-la até nós, deu voz a algumas figuras reais/imaginárias, verosímeis e lendárias, vindas das crónicas e anais quinhentistas, da tradição oral e escrita ou do engenho e arte do fabulador. As salas e salões nobres e as casas plebeias abrem-nos as portas e deixam-nos ver/ouvir por entre o bruaá de fidalgos, escudeiros, frades, despachadores e moços da corte as falas dos intervenientes de maior relevo em palco. Tal o caso dos dois irmãos Gonçalves da Câmara, o secretário de estado e o confessor do rei, do cardeal-infante D. Henrique e da rainha viúva Catarina de Áustria, dos humanistas Diogo do Couto e Damião de Góis, dos condes da Vidigueira, do censor e do impressor da epopeia, para além da presença fugaz de D. Sebastião. Bem mais determinante será a presença de Ana de Sá e de Francisca de Aragão, a mãe protetora e a musa inspiradora de Luís de Camões, o protagonista absoluto da coisa feita para ser representada.
Lidos os livros e relida a peça, revemos nos diálogos travados pelos atores no drama o mesmo recorte de palavras atribuído ao narrador e personagens nos romances. A mestria estilística inconfundível de quem lhe deu vida está indelevelmente presente em cada fragmento discursivo gizado na sua tessitura interna. A fina ironia a que nos habituou, a capacidade de se servir dos textos em prosa e verso transcritos e comentados para lhes dar sentidos acrescidos ou clarificar os escondidos. Assim com o envoi da Canção VI, «Com força desusada», que lhe serve de epígrafe e leitmotiv da história por contar, ou do mote e glosas da redondilha «Mas porém a que cuidados?», com que justifica o papel exercido pela futura condessa de Ficalho e ainda enamorada do príncipe dos poetas lusitano.
Vencidas as resistências do Paço e da Igreja, obtido o Alvará de publicação e o Parecer positivo do Santo Ofício, sem mecenas e sem verbas para suportar os custos de prelo pedidos pelo impressor, o obreiro d'Os Lusíadas vê-se obrigado a ceder-lhe o Privilégio de edição dos dez cantos em oitava rima heroica da epopeia. No final do processo e na posse do primeiro exemplar da obra, Luís de Camões pergunta-se/pergunta-nos o que faria com aquele livro. A resposta já fora dada por Damião de Góis no início do segundo ato, ao prever que sairia das prensa quando a balança para aí pendesse. Compara o poema a uma barca, onde cada um quereria viajar sem companhia indesejada. A seu ver, os vencedores fariam que o relato dos principais feitos dos portugueses nas partes da Índia fosse lido com os olhos que mais lhe conviessem. Então como agora tudo continua na mesma. Todos nós podemos testar essa realidade. Assim saibamos encontrar uma solução adequada à questão formulada há quatro centúrias e meio e lhe prestemos a justiça merecida. Afinal não é de ânimo leve que celebramos nesta data a lusitanidade cantada pelo vate português à boa maneira clássica greco-romana de Homero e Virgílio.