30 de novembro de 2022

Os círculos cromáticos dos sangues azul-avermelhados ou azul-arroxeados

Moses Harris, The Natural System of Colours (1776)

PO LI CRO MI AS

Os cavaleiros-guerreiros, cortesãos e clérigos, damas e donzelas cobriam-se da cabeça aos pés de brocados, cambraias e damascos de cores garridas e variadas, protegiam-se pela frente e por trás com trajes de veludo, peliças de lontra, panos de Arrás e outros que tal. Fugiam a sete pés dos gelos invernais e das canículas estivais. Premia deixar que a pureza nívea da pele deixasse esguardar o azul celeste do sangue imaculado a correr-lhes nas veias fidalgas dos quatro costados. Noblesse oblige.

Para se livrarem da triste sina dos laboratores da plebe de lidarem de sol a sol, os filhos dos bellatores em conluio com os oratores deram em casar-se entre si, para assim reter nas suas mãos as rédeas do poder absoluto dos seus reinos e senhoriosEntre nós, Borgonhas e Avises, Áustrias e Braganças, lograram unir ao longo dos tempos e à espera de muitos mais a linhagem de tios e tias, primos e primas, cunhados e cunhadas. Tudo ao molho e em deus. Tudo farinha do mesmo saco. In sæcula a sæculorum.

As taras e manias endogâmicas tardaram mas arrecadaram. Os royalties atuais resistentes à voragem dos tempos, resolveram pular a cerca, vasculhar os/as reais consortes entre a plebe e promover assim uma policromia completa no meio aristocrata subsistente. De azuis, os sangues passaram a avermelhados e arroxeados. Os círculos cromáticos a funcionarem em pleno e no seu melhor. Há exemplos para todos os gostos e desgostos. Salve-se quem puder. É um fartar vilanagem. Oh my goodness!

Na véspera do feriado que celebra a aclamação do duque de Bragança como rei de Portugal, os saudosistas das honras e mordomias perdidas já se preparam para as habituais cerimónias de beija-mão simbólico na praça dos Restauradores. À distância de mais duma centúria da queda das testas coradas entre nós, urge arrear duma vez por todas a bandeira azul-branca da Monarquia caída e hastear para todo o sempre a verde-rubra da República implantada. Assim seja, viva, viva e viva!

25 de novembro de 2022

Evguéni Zamiátin: o nós coletivo em nome do Benfeitor do Estado Único

“Через 120 дней заканчивается постройка ИНТЕГРАЛА. Близок великий, исторический час, когда первый ИНТЕГРАЛ взовьется в мировое пространство. Тысячу лет тому назад ваши героические предки покорили власти Единого Государства весь земной шар. Вам предстоит еще более славный подвиг: стеклянным, электрическим, огнедышащим ИНТЕГРАЛОМ проинтегрировать бесконечное уравнение Вселенной. Вам предстоит благодетельному игу разума подчинить неведомые существа, обитающие на иных планетах -- быть может, еще в диком состоянии свободы. Если они не поймут, что мы несем им математически безошибочное счастье, наш долг заставить их быть счастливыми. Но прежде оружия мы испытаем слово.”
Евгений Иванович Замятин, Мы (1921)

Os livros são como as cerejas, atrás dum deles vem sempre outro ou até um cento. Giuliano da Empoli ocupa grande parte dos dois capítulos iniciais do Le mage du Kremlin (2022) com uma exaustiva referência-paráfrase-comentário a um romance russo composto  mais de cem anos, dado à estampa no estrangeiro em inglês (1925), checo (1927) e francês (1929), à revelia das autoridades bolcheviques então instaladas em Moscovo. O texto maior de Evguéni Ivanovich Zamiátin, Nós (1921), só seria publicado na língua original em que fora escrito em 1952, a título póstumo e em Nova Iorque, tendo tido ainda de esperar por 1988 para sair dos prelos na moribunda URSS, nos tempos reformistas da perestroika e da glasnost de Mikhail Gorbachev. Uma verdadeira travessia épica do deserto para ser dada a conhecer à realidade soviética que a inspirara o embrião das distopias políticas futuras, as tais que marcariam a idade de ouro do género em meados do século passado. Encontram-se nesse grupo o Admirável mundo novo (1932) de Aldous Huxley, o Mil novecentos e oitenta e quatro (1949) de George Orwell, o Fahrenheit 451 (1953) de Ray Bradbury, entre outros, apesar dos autores não terem por hábito reconhecê-lo ou confessá-lo abertamente.

Lidos os livros que falam de livros e os livros de que se fala, muitos pontos de contacto entre uns e outros se vão estabelecendo num cruzamento de histórias feitas com palavras metodicamente tecidas. Um género literário surge quando um ou outro tópico central presente num texto fundador é replicado, ampliado e canonizado por todos aqueles que lhe seguiram as pistas iniciais. Na edificação duma nova série poética, as condutas outrora facultativas acabam por ganhar um caráter doravante obrigatório. À distância de um século, o ensaísta ítalo-suíço rendido à magia do discurso romanesco considera ‒ na abordagem que dedica ao atual universo totalitário de Putin e ao círculo de cortesãos que o envolvem ‒ ser esta obra malquista do Kremlin pós-czarista uma verdadeira máquina do tempo, capaz de prever mutatis mutandis o destino do país dos sovietes desde as suas origens até aos nossos dias. Uma ditadura execrável submetida à tirania dos números e ao carisma sinistro dum Benfeitor implacável, depois crismado por outros fabulistas de Our Ford  [Huxley] ou Big Brother [Orwell]Fora da ficção, fácil seria identificá-los tanto com Lenine como Stalin, podendo ainda incorporar os oligarcas da Silicon Valley, os mandarins do partido único chinês e os fabricantes de fake news das redes sociais.

O relato veiculado por D-503 o construtor da Integral, matemático do Estado Único e redator dos 40 Apontamentos que compõem o Nós ‒ escapa às normas teóricas definidoras dum mundo paralelo utópico. Tudo se passa numa fase futura do mundo real atual, a que não temos acesso espaçotemporal, por nos remeter de imediato para um mundo antecipado. O caráter metatópico e metacrónico presente nas tradicionais versões da Ficção Científica impõe-se ao longo de todo o diário que até nós chegou, convertido numa distopia formal clássica inspiradora de muitas outras. Os escritos do criador da enorme máquina de vidro, elétrica e ignívoma, capaz de desbravar o espaço planetário e integrar a infinita equação do universo, dizem-nos que a missão do engenho será a de subjugar as criaturas ignotas doutros planetas à razão benfazeja dos visitantes, aqueles que surgiram um milénio após a Grande Guerra dos Duzentos Anos. Os alicerces duma sociedade totalitária tinham sido então estabelecidos, onde todos os seus membros numerados eram obrigados a ser felizes, protegidos da barbárie exterior por um providencial Muro Verde, cuja eficiência o desenrolar dos eventos narrados revelarão, expondo a debilidade dessa fronteira erigida entre o paraíso da felicidade sem liberdade dos novos terratenentes e o inferno da liberdade sem felicidade do estado caótico e selvagem primitivo que o precedeu.

Retomando a ideia inicial, os livros não nos remetem para a leitura doutros livros, como por vezes trazem alguns outros à arreata, com os quais partilham o espaço comum duma compilação de vários títulos de diferente tamanho num único tomo. A recente tradução da Relógio d'Água perfilou esta prática editorial, fazendo seguir o Nós de duas «novelas inglesas» satíricas  Os ilhéus (1917) e O pescador de homens (1918) e dum romance histórico inacabado O Flagelo de Deus (1928-1937). Nos textos mais curtos, critica em tom jocoso a ordem mecânica da sociedade britânica novecentista e a hipocrisia dum pretenso defensor dos bons costumes e da luta contra o vício. Os primeiros anos de Átila, o Huno, são tratados nos sete capítulos iniciais da obra póstuma pelo dissidente da revolução russa e acossado pelos artífices do império soviético. A partida prematura do ficcionista moscovita no exílio parisiense deixou fatalmente em aberto o desfecho dum relato de capital interesse para a definição futura do destino europeu nesses tempos agitados pautados pelo advento das invasões bárbaras e inevitável queda do império romano. A nós leitores caberá a missão de imaginar a atualidade dum escrito gizado numa época de grandes mutações históricas cujos ecos distantes ainda esperam um final ideal para todos nós. 

Островитяне (1917) - Ловец человеков (1918) - Бич Божий (1935)

«Dentro de 120 dias, a construção da INTEGRAL estará concluída. A grande hora histórica em que a primeira INTEGRAL voará para o espaço planetário aproxima‑se. Há mil anos, os vossos antepassados heroicos dominaram todo o globo terrestre, estabelecendo nele o poder do Estado Único. Agora têm pela frente uma façanha ainda mais gloriosa: integrar a infinita equação do Universo por meio desta integral de vidro, elétrica e ignívoma. Têm pela frente a missão de sujeitar ao jugo benfazejo da razão as criaturas ignotas que habitam outros planetas — talvez ainda no estado selvagem de liberdade. Se elas não compreenderem que lhes oferecemos uma liberdade, matematicamente correta, será nosso dever obrigá‑las a serem felizes. Antes das armas, experimentaremos contudo a palavra.
Evgeny Ivanovich Zamiatin, Nós (1921)

21 de novembro de 2022

O meu nome é Gal

               GAL  COSTA  -  ÍNDIA  1973               

Índia, teus cabelos nos ombros caídos | Negros como as noites, que não têm luar. | Teus lábios de rosa, para mim, sorrindo | E a doce meiguice desse teu olhar. || Índia, da pele morena | Tua boca pequena, eu quero beijar. | Índia, sangue Tupi, tens o cheiro da flor | Vem, que eu quero te dar todo meu grande amor. || Quando eu for embora, para bem distante | E chegar a hora de dizer-te adeus. | Fica nos meus braços só mais um instante | Deixa os meus lábios se unirem aos teus. || Índia, levarei saudade | Da felicidade que você me deu. | Índia, a tua imagem sempre comigo vai | Dentro do meu coração, todo meu Paraguai.
José Asunción Flores, Manuel O. Guerrero, José Fortuna

Há vozes que quando as ouvimos uma e outra vez temos a sensação secreta de as conhecer desde sempre, escapando-nos a mais remota hipótese de identificar o momento exato em que o primeiro encontro se deu. Terei ouvido a voz bem timbrada de Gal Costa ainda na década de 60. Talvez na reta final, tal como terei ouvido outras vozes estreantes tropicalistas do MPB que por aqui iam surgindo a pouco e pouco, numa fuga constante aos cortes das censuras então vigentes nas duas margens atlânticas da lusofonia.

Ouvi muitas e variadas vezes a voz singular de Gal Costa na década de 60, ouvi-a muitas mais na de 70 e seguintes, estou a ouvi-la agora neste momento  entrados no primeiro quartel do terceiro milénio, poucos dias após se ter calado para sempre em termos físicos e de ter partido seguramente para outras esferas mais elevadas. Felizmente o vinil, os vídeos, a Net e os demais meios fónicos de registo da voz e imagem dos que partem por cá ficaram para os ouvirmos e vermos sempre que tivermos vontade de o fazer.

Guardo alguns álbuns da Gal Costa em casa que muito deixei de ouvir à falta dum gira-discos compatível. Valha-nos o YouTube bem mais prático de manusear e a dispensar-nos também de recorrer às obsoletas cassetes magnéticas e aos compacto discos perdidos algures por aí. Uns e outros ouvem-se em qualquer altura e lugar sem grandes dificuldades, desde que se tenha acesso a um PC preparado para tal. As novas e velhas tecnologias vão e vêm umas atrás das outras, as vozes que queremos ouvir ficam.

A arte de Gal Costa recai no dom de tornar suas e suas as letras e melodias compostas por outros. Falar de cada uma dessas criações cantadas seria uma tarefa hercúlea que não caberia nesta história. Trago aqui a memória distante aquela Índia que ouvi uma única vez em Badajoz numa rádio local raiana, numa madrugada estrelada de verão, num 3.º esq.º dum dado n.º da Plaza del Pilar, com o arco que lhe dá nome à vista. Os agudos finais do Paraguai continuam bem vivos na minha memória acústica. Até hoje, até sempre.

18 de novembro de 2022

Proust Marcel, do tempo perdido ao tempo encontrado

MARCEL PROUST

(10 juillet 1871 – 18 novembro de 1922)

L'alpha et l'oméga

À la recherche du temps perdu

INCIPIT
Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n’avais pas le temps de me dire : « Je m’endors. » Et, une demi-heure après, la pensée qu’il était temps de cher-cher le sommeil m’éveillait ; je voulais poser le volume que je croyais avoir encore dans les mains et souffler ma lumière ; je n’avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour un peu particulier ; il me semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage : une église, un quatuor, la rivalité de François Ier et de Charles Quint. Cette croyance survivait pendant quelques secondes à mon ré-veil ; elle ne choquait pas ma raison mais pesait comme des écailles sur mes yeux et les empêchait de se rendre compte que le bougeoir n’était plus allumé. Puis elle commençait à me devenir inintelligible, comme après la métempsy-cose les pensées d’une existence antérieure ; le sujet du livre se détachait de moi, j’étais libre de m’y appliquer ou non ; aussitôt je recouvrais la vue et j’étais bien étonné de trouver autour de moi une obscurité, douce et reposante pour mes yeux, mais peut-être plus encore pour mon esprit, à qui elle appa-raissait comme une chose sans cause, incompréhensible, comme une chose vraiment obscure. Je me demandais quelle heure il pouvait être ; j’entendais le sifflement des trains qui, plus ou moins éloigné, comme le chant d’un oiseau dans une forêt, relevant les distances, me décrivait l’étendue de la campagne déserte où le voyageur se hâte vers la station prochaine ; et le petit chemin qu’il suit va être gravé dans son souvenir par l’excitation qu’il doit à des lieux nouveaux, à des actes inaccoutumés, à la causerie récente et aux adieux sous la lampe étrangère qui le suivent encore dans le silence de la nuit, à la douceur prochaine du retour.

Marcel Proust, Du côté de chez Swann (1913)

EXCIPIT
Je venais de comprendre pourquoi le duc de Guermantes, dont j’avais admiré, en le regardant assis sur une chaise, combien il avait peu vieilli bien qu’il eût tellement plus d’années que moi au-dessous de lui, dès qu’il s’était levé et avait voulu se tenir debout, avait vacillé sur des jambes flageolantes comme celles de ces vieux archevêques sur lesquels il n’y a de solide que leur croix métallique et vers lesquels s’empressent les jeunes séminaristes, et ne s’était avancé qu’en tremblant comme une feuille sur le sommet peu praticable de quatre-vingt-trois années, comme si les hommes étaient juchés sur de vivan-tes échasses grandissant sans cesse, parfois plus hautes que des clochers, fi-nissant par leur rendre la marche difficile et périlleuse, et d’où tout d’un coup ils tombent. Je m’effrayais que les miennes fussent déjà si hautes sous mes pas, il ne me semblait pas que j’aurais encore la force de maintenir longtemps attaché à moi ce passé qui descendait déjà si loin, et que je portais si doulou-reusement en moi ! Si du moins il m’était laissé assez de temps pour accom-plir mon œuvre, je ne manquerais pas de la marquer au sceau de ce Temps dont l’idée s’imposait à moi avec tant de force aujourd’hui, et j’y décrirais les hommes, cela dût-il les faire ressembler à des êtres monstrueux, comme occupant dans le Temps une place autrement considérable que celle si res-treinte qui leur est réservée dans l’espace, une place, au contraire, prolongée sans mesure, puisqu’ils touchent simultanément, comme des géants, plongés dans les années, à des époques vécues par eux, si distantes entre lesquelles tant de jours sont venus se placer — dans le Temps.

Marcel Proust, Le temps retrouvé (1927)

madeleines

16 de novembro de 2022

José Saramago e o livro das tentações, conselhos e pequenas memórias

«...Terá sido então por essa razão que este livro mudou de nome e passou a chamar-se As pequenas memórias. Sim, as memórias pequenas, de quando fui pequeno, simplesmente.»
José Saramago, As pequenas memórias (2006)

Todos os dias nasce e morre um número indeterminado de pessoas. Todos os dias se comemora um número ilimitado de aniversários. Nem todos atingem, todavia, a importância mediática do centenário. Sobretudo quando está associada a um nome marcante ou a um facto singular que tenha persistido na lembrança coletiva das gentes. Os escritores e as obras literárias estão nesta categoria restrita. José Saramago não escapa à regra. Celebra-se no dia de hoje a data do seu nascimento real na vila ribatejana da Azinheira. Aquele 16 de novembro de 1922 em que a mãe o deu à luz, há precisamente 100 anos, e não a 18 desse mesmo mês e ano, em que o pai se vira obrigado a arrolá-lo na Conservatória do Registo Civil, para assim fugir a uma multa certa e segura. Esta e muitas outras histórias refere-as o mestre da palavra escrita já então laureado com os prémios Camões (1995) e Nobel (1998) n'As pequenas memórias (2006). Boa ocasião esta de festejo tão especial para as evocar.

À distância de oito décadas e picos dos eventos recordados neste repositório de histórias de infância, o memorialista não refere os vultos das letras nascidos/falecidos nesse ano comum do século passado. Pouco sentido teria então à data da escrita referir os centenários da vinda ao mundo de Agustina Bessa-Luís cerca de um mês antes ou da ida desta para melhor de Marcel Proust dois dias depois. Curioso seria referir o acaso deste último ter falecido no mesmo dia em que Saramago teria nascido. Descabido seria também referir o facto de James Joyce ter publicado por essas datas o Ulisses, uma obra-charneira destacada das letras irlandesas modernas à escala global. Efemérides que terão escapado aos verdes anos do criador português de heróis da imaginação que agora festejamos, herdeiros que sua doação a tantas gerações de leitores.

O livro das tentações, conselhos e pequenas memórias resgatadas dum tempo distante não foi feito para ser resumido ou parafraseado. Os episódios impressos nas suas páginas em letra de forma a cheirar a tinta foram trazidos à luz do dia como confidências pessoais proferidas ao nosso ouvido pela voz do relator que os protagonizou. Degustemo-los devagar enquanto os lemos em silêncio. Trata-se de ecos antigos, talvez falsos, por falhas involuntárias de memória, que nos transportam para as paisagens rurais em que se criou e urbanos em que depois cresceu, do terror sentido pelos cães e do fascínio pelos cavalos, do nome-alcunha que lhe puseram na cédula e bilhete de identidade, das aventuras/desventuras de pesca e caça, das aprendizagens escolares e experiências de vida, dos ambientes familiares e de vizinhanças mais ou menos próximas à sua. A lista seria longa de elencar e difícil de selecionar. Que se fique por aqui com a alusão muito breve à história dum lagarto verde com que preenche o último parágrafo do manuscrito feito livro para prazer de todos nós.

10 de novembro de 2022

Oito ou Oitenta

REPOLHO & COVE-DE-BRUXELAS

O reinado mais longo e o governo mais curto da história da monarquia britânica acabam de ser contados neste verão-inverno de 2022. A rainha Isabel II desempenhou a soberania no Reino Unido durante 70 anos e 214 dias e a primeira-ministra Liz Truss somente 49 dias. Curiosas contrastes exemplificativos dum 8 ou 80 proverbial. Dizem os mass media encartados da aldeia global ter sido a mais longeva representante da Casa dos Windsor a cabeça coroada que durante mais tempo empunhou o cetro do poder a nível mundial. A mesma sorte não terá tido Lady Jane Grey, a sua antecessora da Casa dos Tudor, que só terá reinado de 10 a 19 de julho de 1553, ficando por isso conhecida como a Rainha dos Nove Dias.

Dizem os manuais especializados em datas e as listas cronológicas publicadas na Net ter ultrapassado os 72 anos e 110 dias que Luís XIV brilhou como Rei-Sol absoluto em Versailles e nos domínios da França e Navarra. O desaparecimento prematuro dos antecessores e a subida temporã ao trono está na origem destes casos extremos de chefia dum estado, depois concretizado com um extenso percurso de vida. Dom Sebastião de Portugal e Algarves poderia ter tido um destino semelhante, se os sonhos megalómanos de grandeza o não tivessem conduzido a Alcácer-Quibir onde morreu aos 24 anos de idade. Deteve mesmo assim os destinos dos reinos, senhorios e domínios herdados do avô 21 anos e 54 dias.

Filho de rei, rei será. Isto se for o primogénito ou sobreviver aos irmãos mais velhos. Dom Afonso Henriques nasceu infante e tomou a seu cargo a chefia do Condado Portucalense como príncipe entre as batalhas de São Mamede (1128) e de Ourique (1139). O facto de ser filho dum mero conde não lhe deu acesso imediato ao título de Rei. Teve de o conquistar pela força das armas, direito reconhecido pelo suserano leonês em Zamora (1143) e pelo Santa Sé na bula papal Manifestis Probatum (1179). Um longo percurso que permitiu ao primeiro soberano Casa de Borgonha tomar as rédeas do poder por 73 anos, 1 mês e 4 dias. Um record absoluto que os meios de comunicação social atuais calaram por completo.

Dom Carlos de Bragança reinou 18 anos e 105 dias e mais reinaria não fora o regicídio do primeiro de fevereiro de 1908. Ao que parece, Dom Luís Filipe ter-lhe-á sobrevivido 20 minutos. Rei morto, rei posto. O Príncipe Real não consta em nenhuma lista como Rei de Portugal. Faltou-lhe o ato da aclamação solene na Assembleia de Cortes, como o irmão acabaria por ter 3 meses e 5 dias mais tarde. Uma eternidade. Um tudo ou nada, em suma. Isso não impediu que nesses escassos minutos que sobreviveu ao pai não tivesse aos seus ombros o pesado fardo dos destinos do Reino. Histórias que os anais monárquicos colecionam nestas grandezas que vão dum enorme repolho a uma mera couve-de-bruxelas.