4 de novembro de 2024

Sinestesias escutadas

Rubens & Brueghel
El oído, 1617-1618
[Museu del Prado, Madrid]

Ouvires, Fragores, Rumores, Soares

O tum-tum-tum-tum tum-tum-tum-tum de abertura da Sinfonia do Destino (1804-1808), a popular 5.ª sinfonia em dó menor op. 67 de Beethoven, faz-me lembrar como a sucessão melódica de toques bem dados pode gerar uma das melodias mais conseguidas da música clássica de todos os tempos. Funciona como o início duma vasta conversa travada entre todos os instrumentos que a tornam audível e compreensível. Uma extensa pergunta que só obterá uma resposta cabal no termo do quarto andamento com o tum-tum final. 

O tá-tá-rá-tá ascendente seguido do tá-tá-rá-tá descendente dos primeiros acordes da Grande Sinfonia (1788), a célebre sinfonia n.º 40 em sol menor KV. 550 de Mozart, atacam o imenso jogo de perguntas/respostas presentes ao longo da totalidade da peça. A expressão vienense do rococó em sons então vigente divergia em muito das sonoridades mais intimistas produzidas pelo romantismo alemão predominante na época. Sinestesias claras do toque táctil da orquestra com o tato ligado ao toque sentido com os tímpanos.

O tã-tãrãrã ‒ tã-tãrãrã 'rãrã contínuo de dois compassos repetidos cento e sessenta e nove vezes pela caixa-de-guerra do Bolero (1928) de Ravel, como se se tratasse uma prolongada afirmação proferida num único movimento, a ritmo uniforme e invariável, a rondar um quarto de hora. Os ouvires, fragores, rumores e soares deste tempo di Bolero, moderato assai, foi criado para balett, mas pode ser apreciado com todos os sentidos numa simples interpretação orquestral, num auditório musical, gravado num disco ou trauteado de memória.

Os soídos musicais nunca se deixam traduzir por uma cadeia sonora verbalizada de vocábulos concretos, com ou sem recurso à imitação onomatopaica. É que se uma imagem vale mais do que mil palavras, então atrevo-me a dizer que uma melodia inspirada vale mais do que mil imagens. Veem-se quando se ouvem, saboreiam-se quando se tocam, respiram-se quando se escutam e nos sabem aprisionar. São sentidas com todos os sentidos que o sistema sensorial pôs ao nosso dispor, a única língua universal fruto do engenho e arte humanos.

Edvard Munch, Skrik (1893)