Bianca Castafiore & Maria Callas
A primeira definição que me foi dada de ópera marcou-me pela carga fortemente negativa dos termos utilizados. Não me lembro da ordem exata das palavras que compunham a frase então pronunciada, mas recordo que assentava nos alegados gritos estridentes produzidos em palco por umas senhoras que não sabiam cantar e eram aplaudidas por um conjunto de pessoas que não tinham nada para fazer. Nessa primeira abordagem do canto lírico, não havia lugar para caraterizar as vozes masculinos que acompanhavam as femininas tão severamente causticadas.
Entrei algum tempo depois no universo desenhado por Hergé n'As aventuras do Tintim, e encontrei de imediato na Bianca Castafiore o protótipo perfeito dessas virtuosas de timbre vocal tão penetrante, apesar de ser descrita nos álbuns em que aparece com o epíteto de Rouxinol Milanês. A imagem verbal e a iconográfica estava traçada, só faltava encontrar o registo sonoro para completar um cromo completo da intérprete da «Air des bijoux», do Fausto de Charles Gounod, ou da totalidade de La gazza ladra, de Gioachino Rossini, que tanto sucesso obtivera no Scala de Milão.
As digressões constantes do professor Bento Monteiro, nas aulas de Português ou de História, ou os esclarecimentos da Senhora Dona Maria do Rosário, que depois da catequese me dava pro bono uma ou outra lição de piano. Com o primeiro, ouvi em estreia absoluta Enrico Caruso e Mario Lanza e fui sensibilizado para ver as diferenças existentes entre um e outro, com vantagem do italiano sobre o americano. Com a segunda, descobri que afinal o tal canto bárbaro para desocupados também era conhecido como bel canto. A caricatura traçada começava a ser desmontada.
Dizem que o criador belga se terá inspirado em Renata Tebaldi e Maria Callas para dar vida à sua prima donna, as mais famosas sopranos da época, a rivalizarem entre si e com todas as restantes divas que as antecederam e sucederam nos palcos operísticos do mundo pelo estrelato, preferência do público e atenção dos media. Pelo seu caráter voluntarioso, temperamental e perfeccionista, mais do que pelo perfil lírico, maestria interpretativa ou timbre vocálico inigualável das duas, inclino-me mais para La Divina grega do que para La voce d'Angelo italiana. Chi lo sa dirà!
Na passagem da década de 60 para 70 não falhei uma transmissão pela EN2 das temporadas do São Carlos. O meu percorsi di vita attraverso l'opera lirica fez-se depois nas récitas populares do Coliseu. Lembro-me duma pouco conhecida Manon de Massenet e duma famosa Aida de Verdi. Entre um autor francês e um italiano, ainda couberam muitos outros cantados em inglês e alemão, como o Porgy and Bess de Gershwin e o Die Walküre de Wagner. Uma caminhada pela opera in musica a desmontar por completo a definição que me fora dada tantos anos antes.
Despedi-me do drama cantado ao vivo em palco em 75. O panorama musical fora da capital não prima pela abundância. Passei a ser ouvinte assíduo das gravações em vinil e laser, a visionar as muito escassas difusões televisivas da RTP2 ou do Canal Mezzo. Recorro hoje em dia ao YouTube e a outras plataformas de partilha de vídeos acessíveis através dum mero PC portátil. Vantagens dos nossos tempos internéticos. Avere una compagnia quotidiana de soprani e tenori, de bassi e contralti, de baritoni e mezzosoprani, a po 'di tutto o tutti quanti senza uscire di casa. Ecco!
HERGÉ, Les aventures de Tintin |