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| Raffaello Sanzio, Parnaso (c. 1510-1511) [Pallazzo Apostolico, Stanza della Segnatura, Vaticano] |
Tertúlia - Tália - Parnaso
Ao entrar nos pretéritos anos 60 na Rua das Montras rumo à Praça da Fruta, deparávamo-nos com três pequenas livrarias, cujos nomes nos sugeriam de imediato alguns dos mitos e lendas ancestrais mais conhecidos da cultura helénica clássica: Tertúlia, Tália e Parnaso. Estava concentrado naquela via central da Caldas da Rainha um grupo de seres divinos e heroicos evocados amiúde pelas letras e artes. Olhando para os frescos renascentistas de Rafael no Vaticano, encontramos ali representados muitos deles a duas dimensões, sobretudo os ligados ao deus Apolo e às nove Musas, reunidos na ΄Ορος Παρνασσός, próximos de Delfos, a cantar e dançar em coro ao som da lira e dos versos dos poetas imortais antigos e modernos.
A Tertúlia de Artes e Letras ficava à entrada daquela correnteza de lojas variadas. Estava sediada no primeiro andar dum prédio idêntico a tantos outros ali residentes, mas com um recheio de livros, discos, gravuras, peças de arte, permitindo o convívio com muitos criadores dos heróis da imaginação elevados às alturas da imortalidade. Ali se reuniram no escasso par de anos da sua vida vultos conhecidos da nossa cultura, em tertúlias literárias e artísticas da παιδεία lusitana, resistente às diatribes usuais nos tempos da outra senhora de má memória para os amantes do livre-pensamento. Subi os degraus daquela escadaria uma meia dúzia de vezes e encontrei sempre ao meu dispor tudo aquilo que procurara em vão noutros locais.
Um pouco mais à frente, no outro lado da rua ainda aberta ao tráfego automóvel ficava a Tália, a mais ampla e concorrida do trio, talvez por funcionar também como papelaria, discoteca, ludoteca e outras ofertas mais para quem a visitava por hábito ao longo do dia. A musa da Comédia ‒ a tal que inspirara o nome da loja ‒ lá estava em sintonia fraterna na companhia das demais protegidas de Apolo, a guiar os potenciais amantes mortais da poesia, drama, história, dança e beleza em geral, para levarem para casa um pouco da criação artística e científica produzidas com a sua inspiração divina. Por ali passei vezes sem conta. Ali folheei revistas, ouvi discos e cirandei sem destino certo, como muitas vezes convém.
A terminar o circuito triangular e após uma nova travessia do itinerário comercial a céu aberto da cidade da rainha, deparámo-nos com a Livraria Parnaso, a mais pequena de todas mas também a mais longeva, a única que tem conseguiu resistir até aos nossos dias à voragem inexorável do tempo. A minha memória visual guarda a imagem precisa do espaço exíguo onde os livros se viam por toda a parte protegidos pela vitrine da montra virada para os passeantes e pelo balcão protetor de atendimento dos clientes. Tocávamos-lhes à distância com os olhos arregalados e cheirávamo-los com ambas as narinas bem abertas. Depois da compra, saíamos com os sentidos bem despertos para a aventura da escrita que nunca falhava.
Livrarias surgem, livrarias partem, mas, no admirável mundo novo em que vivemos, são mais as que fecham as portas até um nunca mais do que aquelas que as abrem para os amantes de livros físicos novinhos em folha. O contacto com a escrita faz-se cada vez mais à distância. O virtual condenou as sinestesias da leitura à tirania insípida do digital. Tudo se resume ao matraquear do teclado dum PC ligado à Net e à visualização do texto desejado no respetivo ecrã. Livrámo-nos de vez das poeiras e odores a mofo das edições antigas, mas fomos igualmente impedidos de acariciar as palavras impressas a tinta numa folha de papel. Por outras palavras, deitou-se o bebé fora junto com a água do banho. Nem mais nem menos.
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