27 de novembro de 2025

Histórias com pés para andar

Pés Pegadas Círculos

Nasci descalço como toda a gente e até poderei morrer calçado como ocorre com alguns. Mas, fora essas situações extremas de alfa & ómega, nunca necessitei de manter os pés ao léu pela vida fora. Em grande parte, devo-o aos meus avós maternos, os únicos que conheci. Durante toda a infância e parte pré-adolescente, a minha avó ajuntadeira e o meu avô sapateiro confecionaram-me sandálias no verão e botas no inverno.

quem tenha saudades viscerais dos tempos em que os pés descalços usados a contragosto imperava. Com os meus pés calçados a preceito em qualquer estação do ano, lembro-me muito bem dos meus colegas do primário com os pés pelados, calejados de pisar o chão de todos os dias, se sentavam, por desígnio inviolável de casta, na chamada fila dos burros, aquela que ficava situada na parte mais escura da sala.

À distância de muitos verões e invernos, sinto o prazer de andar por casa casa de pés ao ar, liberto dum qualquer tipo de prisão forçada. A passagem dos dias quentes para os frios faz-se mais no meu imaginário pessoal quando sou forçado a resguardar os pés do contacto do solo do que aquando da mudança de hora. Atiro-me às havaianas de enfiar nos dedos acompanhadas dumas peúgas de algodão ou de lã protetoras.

Sente-se o frio conforme a roupa, sobretudo quando se tem o livre-arbítrio de o fazer. De substituir a seu belo prazer uma t-shirt por uma camisa com mangas e umas bermudas por umas calças de pernas compridas, de escolher uns sapatos adequados a cada uma das épocas do ano. Fazer um pouco mais do que os meninos da minha escola podiam fazer quando as condições e fenómenos atmosféricos assim o exigisse.

21 de novembro de 2025

João Aguiar, Díptico dos Lusitanos II: a hora de Sertório, crónicas a três mãos dum general romano contra Roma

«Já nessa época o seu nome não me era desconhecido. Sertório tinha então vinte e um anos e uma presença física extraordinária: uma força da natureza modelada pela alma, pensei enquanto o observava discretamente. Um corpo vigoroso que transmitia uma impressão de resistência e agilidade; um rosto que parecia talhado em pedra a golpes de espada. Nesse rosto, a única expressão estava nos olhos grandes e cinzentos. Eram eles que riam, que se zangavam ou se apiedavam. Em qualquer caso, inspiravam confiança.» 
João Aguiar, A hora de Sertório (1994)

 A história do mundo é feito de invasões. As que se verificaram num tempo anterior aos registos escritos auxiliares da nossa memória só são detetadas, com alguma dificuldade, pelos vestígios que deixaram aquando da sua passagem/permanência pelos espaços que hoje em dia ocupamos. Muitos deles, totalmente estranhos ao nosso modo de os explicar com todo o rigor exigido para afastar os fantasmas do mistério. Depois, há as outras migrações efetuadas com um caráter mais claro de fixação perdurável nem sempre conseguida. No caso especial da mais ocidental península eurasiática, rezam os anais antigos e recentes ter sido visitada em datas nem sempre precisas por povos que nos habituámos a designar de Fenícios, Gregos e Cartagineses, mas também de romanos, bárbaros e mouros, entre alguns mais geralmente referidos nos manuais escolares em nota de rodapé. Dizem também que entre as diversas tribos resultantes da miscigenação de Celtas e Iberos teriam surgido os Lusitanos, eponímia épica por excelência para designar os descendentes de Luso. Não custa nada aceitar em termos simbólicos esses mitos e lendas ancestrais associados ao nosso devir coletivo, que em dada altura dos nossos Séculos de Ouro até inspiraram Camões a cantar as suas armas e barões assinalados.

Os grandes fluxos periódicos de massas, ocorridos em momentos de crise profunda, nunca se dão sem desencadearem um conjunto de rebeliões dos nativos contra os estrangeiros invasores. Então como agora, nada mudou no quadro do comportamento humano ao longo dos tempos. João Aguiar aproveitou-se duma destas ocasiões de instabilidade e assentou arraiais na recriação ficcionada das guerras de ocupação romana da Hispânia, para pintar um díptico verbal da resistência lusitana que lhe foi movida, primeiro n'A voz dos deuses (1984), focado na figura incontornável do caudilho nativo Viriato, seguido uma década depois n'A Hora de Sertório (1994), centrada no general rebelde nomeado no título do segundo relato da série. Uma sucessão altamente improvável representada no teatro dos eventos bélicos travados nos três quartos de século que antecederam a unificação completa do espaço ibérico. Tal como considera o autor nas notas finais do livro, a figura de Quinto Sertório (122-72 AEC) insere-se numa espécie de «folclore histórico» português vertido no partidário dos povos bárbaros levantados contra a grande potência imperial antiga, quando na realidade se limitou a alinhar nas fileiras oponentes da facção política do ditador Sila.

A estrutura organizativa deste segundo painel do díptico novelesco é bastante mais complexa do que a usada no primeiro. O fluxo narrativo passou a repartir-se por três testemunhos escritos distintos, que se completam na diversidade dos episódios convocados a um ritmo cronológico. Olhares lhes podemos chamar, constituindo cada um deles uma espécie de «novela» autónoma de dimensão mediana, partilhando um fio condutor comum aos dois «romances» que formam o retábulo gizado com palavras. Os fragmentos autobiográficos dos emissores internos cruzam-se esporadicamente com o percurso de vida seguido pelo general romano amotinado, tanto na península itálica como na ibérica, funcionando grosso modo como um muito breve esboço biográfico da figura mais importante da efabulação. A prestação inaugural foi confiada a Euménio de Rodes, um filósofo fictício grego estabelecido em Roma, que nos legou um conjunto de fragmentos de reflexão pessoal datados de 95-79 AEC. Seguem-se-lhe os escritos de Lúcio Hirtuleio, descrito nas Notas finais como um estratega conceituado da Guerra Sertoriana (80-72 AEC) e o mais fiel colaborador do seu líder. O derradeiro bloco deve-se a Medamo, referido por Plutarco e ficcionado por João Aguiar, para documentar o assassinato do herói, nos últimos instantes da Hora de Sertório.

O encontro casual dum rolo de papiro nas ruínas do santuário de Endovélio, exarado pelo seu antigo guardião, abre as portas a um romance histórico tradicional, decalcado nos cânones vulgarizados a partir da sua fase romântica oitocentista. Promove ainda a ligação discursiva entre os dois vultos maiores da resistência lusitana à ocupação latina, através do narrador singular do painel mais antigo do díptico e do narrador charneira do mais recente. Este achado faculta-nos, deste modo, a interface estratégica entre os itinerários vitais do portador da insígnia do touro e do homem da corça, i.e., de Viriato e Sertório. A busca sistemática pela verosimilhança genérica exigida e viabilizar a reconstituição criteriosamente encenada. Assim se representa de modo credível uma panóplia documentada de factos fingidos mesclados num repositório de factos efetivamente acontecidos. Onde as lacunas históricos se instalaram ao longo dos tempos nos anais oficiais conservados, a verve criativa romanesca encarrega-se de as preencher plausivelmente com todo o engenho e arte gerado ao sabor das malhas da imaginação literária.   

17 de novembro de 2025

Olhar idealizado da rainha perfeitíssima olhada à distância por José Malhoa

José Malhoa, Rainha D. Leonor de Lencastre (1926)
[Caldas da Rainha, Museu José Malhoa]

Os 500 anos da rainha das caldas e das misericórdias

Num dia como o de hoje de há precisamente quinhentos anos, a Rainha Dona Leonor de Lencastre exalava o último suspiro. Aquela a quem as didascálias da Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente referiam como a Rainha Velha e que a minha geração se habituou a identificar como Dona Leonor de Lencastre, passou a ser apelidada de Avis, de Viseu ou de Portugal. A Rainha Perfeitíssima foi espoliada no universo mediático do nome da Rainha da Boa Memória.

Nas Caldas da Rainha tudo evoca/evocava a sua insigne padroeira, a consorte de Dom João II, duas vezes herdeira da coroa portuguesa, a bisneta mais ilustre de Dona Filipa de Lencastre, a matriarca da Ínclita Geração. O Hospital Termal por si fundado em 1485 continua a lembrá-la em cada recanto que o nosso olhar alcance e os guias turísticos nos conduzam. O mesmo se não poderá dizer do parque fronteiro ao complexo termal, agora rebatizado de Dom Carlos I.

No centro desse espaço ajardinado ao gosto romântico, fica o Museu Malhoa, que possui no seu espólio um retrato póstumo da Rainha Dona Leonor (1926), uma tela a óleo pintada pelo grande mestre caldense e doado à instituição aquando da sua criação em 1933. Ali se mantém imponente até hoje, numa sala condigna da sua grandeza régia, depois de ter esperado provisoriamente na Casa dos Barcos pela inauguração oficial do edifício definitivo no ano seguinte.

O olhar idealizado rainha perfeitíssima olhado à distância por José Malhoa representa-a na flor da idade, pouco depois de ter subido ao trono. A paleta do pintor naturalista não a tingiu com as cores sombrias dum amanhã ainda distante, a mãe enlutada pela perda do filho adolescente e a viúva amargurada sem vontade de sorrir para quem se deixasse olhar. Imagem ainda inacabada duma princesa real com tanta vida ainda para viver e tantas histórias por contar.

Armas da Rainha D. Leonor de Lencastre
Jean du Cros, Livro da Perfeição das Armas (1509)
[Lisboa, BNP]

12 de novembro de 2025

O bicentenário discreto de Camilo Castelo Branco


O silêncio é uma confissão
Camilo Castelo Branco, O bem e o mal (1863)

Deixei passar em branco o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco. Não posso esperar pelo bicentenário da sua morte, porque nessa data já não terei possibilidade de o fazer.

Vasculhei nos escaparates das livrarias ainda abertas aqui do burgo e não encontrei quase nada da vasta obra que nos legou. Nem a diversidade de géneros cultivados ajudou nessa pesquisa.

Sacudido o das edições antigas e munido duma máscara sobrante da Covid-19, reinicio a tarefa de reler os títulos residentes nas minhas estantes pessoais. Já os tenho à minha beira. Mãos à obra.

Um dia destes ainda me vou pôr a falar dum deles. Até pode ser O bem e o mal que me emprestou o tema para retirar do silêncio um dos imortais da república das letras portuguesas. Veremos.

Obs.:
Camilo Castelo Branco  (Lisboa, 16 de março de 1825 – São Miguel de Seide, 1 de junho de 1890)

6 de novembro de 2025

A tertúlia das musas parnasianas…

Raffaello Sanzio, Parnaso (c. 1510-1511)
[Pallazzo Apostolico, Stanza della Segnatura, Vaticano]

Tertúlia - Tália - Parnaso

Ao entrar nos pretéritos anos 60 na Rua das Montras rumo à Praça da Fruta, deparávamo-nos com três pequenas livrarias, cujos nomes nos sugeriam de imediato alguns dos mitos e lendas ancestrais mais conhecidos da cultura helénica clássica: Tertúlia, Tália e Parnaso. Estava concentrado naquela via central da Caldas da Rainha um grupo de seres divinos e heroicos evocados amiúde pelas letras e artes. Olhando para os frescos renascentistas de Rafael no Vaticano, encontramos ali representados muitos deles a duas dimensões, sobretudo os ligados ao deus Apolo e às nove Musas, reunidos na ΄Ορος Παρνασσός, próximos de Delfos, a cantar e dançar em coro ao som da lira e dos versos dos poetas imortais antigos e modernos.

A Tertúlia de Artes e Letras ficava à entrada daquela correnteza de lojas variadas. Estava sediada no primeiro andar dum prédio idêntico a tantos outros ali residentes, mas com um recheio de livros, discos, gravuras, peças de arte, permitindo o convívio com muitos criadores dos heróis da imaginação elevados às alturas da imortalidade. Ali se reuniram no escasso par de anos da sua vida vultos conhecidos da nossa cultura, em tertúlias literárias e artísticas da παιδεία lusitana, resistente às diatribes usuais nos tempos da outra senhora de má memória para os amantes do livre-pensamento. Subi os degraus daquela escadaria uma meia dúzia de vezes e encontrei sempre ao meu dispor tudo aquilo que procurara em vão noutros locais.

Um pouco mais à frente, no outro lado da rua ainda aberta ao tráfego automóvel ficava a Tália, a mais ampla e concorrida do trio, talvez por funcionar também como papelaria, discoteca, ludoteca e outras ofertas mais para quem a visitava por hábito ao longo do dia. A musa da Comédia ‒ a tal que inspirara o nome da loja ‒ lá estava em sintonia fraterna na companhia das demais protegidas de Apolo, a guiar os potenciais amantes mortais da poesia, drama, história, dança e beleza em geral, para levarem para casa um pouco da criação artística e científica produzidas com a sua inspiração divina. Por ali passei vezes sem conta. Ali folheei revistas, ouvi discos e cirandei sem destino certo, como muitas vezes convém.

A terminar o circuito triangular e após uma nova travessia do itinerário comercial a céu aberto da cidade da rainha, deparámo-nos com a Livraria Parnaso, a mais pequena de todas mas também a mais longeva, a única que tem conseguiu resistir até aos nossos dias à voragem inexorável do tempo. A minha memória visual guarda a imagem precisa do espaço exíguo onde os livros se viam por toda a parte protegidos pela vitrine da montra virada para os passeantes e pelo balcão protetor de atendimento dos clientes. Tocávamos-lhes à distância com os olhos arregalados e cheirávamo-los com ambas as narinas bem abertas. Depois da compra, saíamos com os sentidos bem despertos para a aventura da escrita que nunca falhava.

Livrarias surgem, livrarias partem, mas, no admirável mundo novo em que vivemos, são mais as que fecham as portas até um nunca mais do que aquelas que as abrem para os amantes de livros físicos novinhos em folha. O contacto com a escrita faz-se cada vez mais à distância. O virtual condenou as sinestesias da leitura à tirania insípida do digital. Tudo se resume ao matraquear do teclado dum PC ligado à Net e à visualização do texto desejado no respetivo ecrã. Livrámo-nos de vez das poeiras e odores a mofo das edições antigas, mas fomos igualmente impedidos de acariciar as palavras impressas a tinta numa folha de papel. Por outras palavras, deitou-se o bebé fora junto com a água do banho. Nem mais nem menos.