« Les salauds ! les fous ! Ils ont osé faire ça ! Car à l’instant où j’écris ces lignes, j’ai des raisons de croire qu’une tragédie vient de se produire. Non pas une calamité naturelle, mais une apocalypse brutale façonnée de main d’homme. Le cafouillage ultime de notre espèce. Qui conclura nos quelques milliers d’années d’histoire. Qui fera tomber le rideau final sur nos vénérables civilisations. Et qui, incidemment, nous fera tous périr. Ce soir même. Ou peut-être demain aux aurores… »
Amin Maalouf, Nos frères inattendus (2020)
Há livros que mal lhes pegamos os pomos logo de parte, tal o enfado e/ou desconforto que nos causam. Há também aqueles que por mais que nos esforcemos nos deixam completamente indiferentes e incapazes de guardar na memória a sua existência e conteúdo. Há ainda aqueles que felizmente mexem connosco desde a frase inicial à derradeira. O que se diz dos livros lidos pelos leitores severos pode também dizer-se dos livros escritos pelos autores eleitos, aqueles que nos enchem as medidas e que nunca nos cansamos de visitar. Amin Maalouf, o ocupante da poltrona 29 da Académie française, pertence a este número reduzido dos meus criadores diletos. Conheci-o por acaso no romance e adotei-o de seguida no ensaio. O último título publicado, Nos frères inattendus (2020) ﹘ à espera duma tradução portuguesa ﹘ filia-se no cruzamento da ficção novelesca e do pensamento reflexivo, apanágio que, de certo modo, o tem acompanhado ao longo de todo a percurso literário. Volta a recorrer à componente distópica após uma primeira investida no Le premier siècle après Béatrice (1992), onde a configuração dum mundo possível diferente do nosso é abordado, muito embora o problema da natalidade seletiva do mais antigo seja substituído pelo problema do naufrágio das civilizações do mais recente.
Um dos elementos-chave responsáveis pela minha adesão imediata ao estilo inebriante deste pensador líbio-francês reside no modo singular como encara as dialéticas dos tempos, sobretudo no seu relacionamento conflituoso entre os vários blocos civilizacionais que foram desenhando a pouco e pouco os dias de hoje. A procura de diálogo entre o Oriente e o Ocidente, entre os vários povos da cultura monoteísta do Livro, entre a luz e as trevas. Nesta mais recente abordagem do mundo atual, recorre ao contributo grego antigo, ao designado milagre ateniense, o momento grandioso em que o espírito criador humano inventou o teatro, a filosofia, a medicina, a história, a escultura, a arquitetura e a democracia. Os obreiros cabais das artes, ciência e pensamento, que a Idade Média abafou e os irmãos reencontrados﹘filhos secretos de Sócrates, Platão, Eurípedes, Heródoto, Hipócrates, Fídias, Aristóteles e muitos mais ﹘ tentaram restaurar na Idade Moderna. Os anais e os mitos aliaram-se à fábula, num ato de grande cumplicidade com a utopia, o tal mundo paralelo referido no texto, tal como o vê Eco no Sobre os espelhos e outros ensaios*, instituindo um braço de força pacífico e sem tréguas entre a eutopia ideal e a distopia real.
A visita efémera dos nossos irmãos inesperados teve uma duração fugaz de 20 dias. Os amigos de Empédocles chegaram, dominaram, espalharam um sopro de angústia e de esperança sobre o mundo. Depois partiram sem avisar. Estiveram entre nós de 9 de novembro (terça-feira) a 9 de dezembro (quinta-feira), talvez de 2021, por distar 50 anos da aprovação da 25.ª emenda da constituição do EUA (1967) e se conjugar com os dias da semana apontados no diário do protagonista-cronista, i.e., num futuro perto da publicação da obra e da data em que a li. Esses salvadores/predadores com nomes gregos significativos ﹘ Agamémnom, Demóstenes, Pausânias, Electra ﹘, vindos não se sabe donde no tecido espácio-temporal, detentores de poderes inexplicáveis à luz dos conhecimentos atuais, capazes de evitar uma catástrofe nuclear travada a nível global ou de poder prolongar a vida para além dos limites da morte, espalham-se um pouco por todo o lado à escala planetária, apesar da ação se centrar na minúscula Antioquia, uma das quatro ilhas fictícias do arquipélago Les Chirons, atravessado pela corrente do Golfo, no Atlântico Norte, provavelmente situado nas imediações das costas setentrionais da Noruega ou das Cornualhas, por decorrer em pleno inverno à distância de seis fusos horários de Washington.
À medida que a leitura prossegue, aprendi a gostar das personagens, a sentir o que elas sentem, a sentir a sua falta quando o final do relato se vislumbra no horizonte. Assim se passa com Alexandre e Ève, os protagonistas reportados pelo primeiro em quatro cadernos ﹘Neblinas, Abertas, Ancoragens e Eclipses ﹘, conhecido no meio artístico dos cartoons jornalísticos como Alec Zander, e pela sua única vizinha insular, a autora do romance de culto premonitório L'avenir n'habite plus à cette adresse, narrado pela lendária Lilith no hebraico Talmude de Babilónia. Depois há Moro, o amigo do desenhador-relator e conselheiro do presidente americano Milton. A escolha destes antropónimos, associados aos criadores de duas obras maiores da literatura ocidental, a Utopia de Thomas Morus e o Paraíso Perdido de John Milton, não me deixaram indiferente à trama em que dois modelos civilizacionais edénicos se confrontam, pondo em risco a sobrevivência das duas. A menos que ambas estejam de acordo em abrir uma nova página entre uma e outra. De eleger como única inimiga a morte, de a fazer recuar através da sabedoria e do conhecimento até ao final dos tempos, viabilizando assim a aliança dos dois ramos da humanidade com a vida, livre da doença e do envelhecimento, a união eterna dos irmãos inesperados e dos irmãos reencontrados.
NOTA
* Umberto ECO, «Os mundos da ficção científica», IN Sobre os espelhos e outros ensaios. [1985]. Lisboa: Difel, 1989.