30 de julho de 2021

A volta dos velhos passaportes ou dos novos salvo-condutos de livre-trânsito

ALAIN CABOT
Série Passeporte : Voyage autour d'un visa (je)
(2016)

li·vre·-trân·si·to
nome masculino
Passe que permite a entrada livre em locais de acesso condicionado.

Tomei a segunda dose da vacina da Pfizer contra a Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2)  precisamente duas semanas. Vou esperar até à próxima segunda-feira para perfazer, sem margem para dúvidas, os catorze dias exigidos pela DGS para obter a imunização completa da pandemia agora em curso e poder assim obter o Certificado Digital COVID da UE. Quando isso acontecer, já estarei de posse do tal passe pessoal a permitir a entrada em locais de acesso condicionado e a facilitar a liberdade de circulação dentro da União Europeia e dalguns países mais. A minha parte está feita. Alea jacta est.

Estes novos salvo-condutos de livre-trânsito fazem-me lembrar os velhos passaportes doutros tempos, como se por artes de berliques e berloques estivessem de volta. As guerras de fogo que então se travavam, ocorrem agora a nível planetário e envolvem-nos a todos. As licenças escritas pelas autoridades para viajar referem-se hoje à aldeia-global que nos aloja. A única que vemos, a única que temos, a única que nos tolera. O suporte físico do passaporte de papel foi substituído no Espaço Schengen pelo suporte virtual do certificado digital. Mudam-se os tempos, mudam-se as práticas de salvaguardar as vontades em segurança. Dura lex, sed lex.

Quero acreditar que os certificados sanitários atuais sejam extintos a breve trecho, tal como as licenças militares foram revogadas quando deixarem de fazer sentido. Situações excecionais exigem medidas excecionais. Assim como não gostaria de voltar a ser obrigado a ter de exibir um passe oficial para me deslocar ao estrangeiro, tampouco me agradaria continuar a exibir um visto interno de livre circulação para aceder a eventos culturais, desportivos, corporativos ou familiares, a frequentar complexos turísticos e de alojamento local, a restaurantes e hotéis. Que a normalidade pré-pandémica seja recuperada sem vacilações ou reservas. In sæcula sæculorum.

26 de julho de 2021

Haruki Murakami, os meses de abril a junho do ano de 1Q84-1

 
青豆はそのあとたまたま「渚にて」という映画をテレビの深夜放送で見た。一九六〇年前後につくられたアメリカ映画だ。アメリカとソビエトとのあいだで全面戦争が勃発し、大量の核ミサイルがトビウオの群れのように大陸間を盛大に飛び交い、地球があっけなく壊滅し、世界のほとんどの部分で人類が死に絶えてしまう。しかし風向きかなにかのせいで、南半球のオーストラリアだけにはまだ死の灰が到達していない。とはいえそれがやってくるのは時間の問題である。人類の消滅は何をもってしても避けられない。生き残った人々はその地で、来るべき終末をなすすべもなく待っている。それぞれのやり方で人生の最後の日々を生きている。そんな筋だった。救いのない暗い映画だった(しかし、それにもかかわらず、誰もが心の奥底では世の終末の到来を待ち受けているものだと、青豆はその映画を見ながらあらためて確信した)。
村上春樹, 1Q84-1(2009)

Uma trilogia, terceto ou tríptico é um grupo de três obras que guardam algo de comum entre si, formando uma unidade temática. Já li o livro 1 (abril-junho) concebido por Haruki Murakami no 1Q84 (2009) e tenho também à minha frente os demais tomos da série romanesco, ciclo heroico ou drama utópico. Estou ansioso por saber o que têm para me dizer, a fim de concluir o que os meses desse misterioso mundo-com-um-ponto-de-interrogação me revelaram até agora nesta fábula orwelliana dos nossos dias. É que se atendermos no facto do número nove e da letra Q se pronunciarem em japonês do mesmo modo, kyū, então o 1984, várias vezes referido no texto, surge-nos logo na mente. É o que as tradutoras da edição portuguesa da Casa das Letras anotam em pé-de-página. Por outro lado, o quê de nove maiúsculo poderá ainda representar, como afirma a criadora interna do termo, o Q inicial da expressão Question mark [Q/q>?], o diacrítico usado para pontuar uma realidade carregada de enigmas, à imagem deste roman-fleuve, cujo caudal flui por três correntes, braços ou afluentes narrativos de longo curso, desde a nascente até à foz.

Lidos os livros mais emblemáticos do autor nipónico, tropeçamos a cada passo com muitos traços estruturais e temáticos comuns, unidos quase todos pelo insólito dos cenários reportados numa prosa poética única. O Estranho predomina no primeiro painel do retábulo pintado com palavras nas duas histórias cruzadas que partilham entre si a trama, a revelar um Fantástico sugerido pelas hesitações sentidas pelas personagens e a apontar para um Maravilhoso ainda incipiente. O universo teórico de Tzvetan Todorov* volta à ribalta em grande estilo. O sumiço súbito duma figura fulcral do Sputnik, meu amor fica por clarificar até ao final do relato, deixando-nos na fronteira do natural/sobrenatural, gizando a tese do refúgio num espaço paralelo ao nosso. A possibilidade dum mundo análogo à chuva de peixes e sanguessugas ou à comunicação oral com gatos ou mental com um cão e uma pedra no Kafka à beira-mar está ausente, mas as alusões a uma cabra cega, a um Povo Pequeno, a uma crisálida de ar ou as duas luas no céu prometem algumas singularidades futuras.

Os diálogos travados pelos interlocutores saltam do cinema para a música, da literatura para a matemática, da história para a ciência, da política para a religião, da economia de mercado para a planificada. A referência a carros, roupas, bebidas, tabacos, perfumes de marca pulula sem parar. Os monólogos interiores a itálico dos protagonistas com direito a título de capítulo convivem com o registo a negrito de frases-chave dos deuteragonistas ditas em momentos especiais da ação. Referem-se a atos de bullying, violação, maus-tratos, abusos sexuais e violência doméstica, crimes hediondos contra as mulheres em geral e as meninas em particular, a merecerem um castigo exemplar. Alude-se ainda num ritmo crescente ao poder totalitário e repressivo duma Vanguarda e dum Amanhecer, comunas secretas, alegadamente rurais, que parecem ligar de modo indelével todos os fios da meada usada na urdidura discursiva. Como se insinua no texto, o mundo distópico liderado pelo Big Brother no 1994 de George Orwell a ser atualizado em 1994 no mundo alotópico povoado pelo Little People do 1Q84 e imaginado à maneira de Umberto Eco**.

Este romance pós-moderno, que nos fala doutros romances ideados em épocas distintas, remete-nos grosso modo para o âmbito tripartido do romance antigo greco-bizantino de amores e aventurasAomame e Tengo encontram-se aos dez anos, perdem-se de vista nas duas décadas seguintes e continuam à espera dum reencontro final ainda por efetivar que sele a paixão sentida secretamente um pelo outro. A dar crédito no San Francisco Chronicle, como eu dou, a escrita do eterno candidato japonês ao Nobel da Literatura cria dependência. Vejamos se a leitura do segundo volume me desperta tanta vontade de pegar no terceiro, como o final deste primeiro me aguçou o apetite de degustar os episódios seguintes da saga peregrina do professor de matemática com aspirações a romancista e escritor-fantasma d'A Crisálida de Ar e da professora de artes marciais e assassina em série nas horas vagas.    

NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica. Lisboa: Moraes Editores, 1977.
(**) Umberto Eco, «Os mundos da ficção científica», IN Sobre os espelhos e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
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EPÍGRAFE
«Depois daquela conversa, calhara Aomame ter visto na televisão A Hora Final, numa emissão durante a noite. Tratava-se de um filme norte-americano produzido e realizado por volta de 1960. Estalara a guerra global entre os Estados Unidos e a União Soviética, o planeta assistia à troca de numerosos mísseis nucleares que se cruzam entre ambos os continentes como um bando de peixes voadores no céu. A Terra estava à beira da destruição e os seres humanos iam desaparecendo em quase todas as partes do mundo. Por qualquer razão desconhecida, talvez devido à direção do vento, quem sabe?, as cinzas radioativas da morte não chegam à Austrália, no hemisfério sul, razão pela qual aí ninguém morre disso. No entanto trata-se apenas de uma questão de tempo. A extinção da raça humana é inevitável. É impossível travá-la. Os sobreviventes aguardam o fim que os espera, sem que nada possam fazer. Cada um passa os últimos dias de vida como pode. O argumento era mais ou menos assim. Um filme negro e triste em que não se vislumbra salvação. (Apesar de tudo, ao vê-lo, Aomame convenceu-se de que, no fundo, todos esperamos, com o coração nas mãos, a chegada do fim do mundo).»
Haruki Murakami, 1Q84-I (Lx, CdL: 11, 213-214)

21 de julho de 2021

Nuno Gonçalves e as histórias pintadas dos Painéis de São Vicente em Lisboa

     Nuno Gonçalves, Painéis de São Vicente (c. 1470)     
[Lisboa - Museu Nacional de Arte Antiga das Janelas Verdes]

O quingentésimo aniversário da morte do Infante Dom Henrique (1960) apanhou-me entre a segunda e a terceira classes, com as férias grandes de verão de permeio. Apesar das aulas de História estarem centradas no quarto e último ano do ensino primário, os ecos ampliados da efeméride não deixaram de se fazer sentir tanto nas escolas do bairro da Ponte como na da praça do Peixe que então frequentava nas Caldas da Rainha. Lembro-me de muito poucas iniciativas alusivas ao momento, organizadas com grande pompa e circunstância pelo Estado Novo, tais como a inauguração do Padrão dos Descobrimentos ou o lançamento especial de selos coloridos, de medalhas de prata e da diversa iconografia pintada ou esculpida do homenageado, representado sempre de chapeirão negro de aba larga e a segurar por vezes uma nau de brinquedo, a comprovar o seu epíteto de Navegador. A minha memória de infância guardou ainda a imagem esfumada dum calendário de parede editado pela SACOR e profusamente ilustrado pelo mestre António Lino, que agora voltei a rever em parte na Net. As particularidades algo exóticas das gravuras levaram-me mais tarde à Biblioteca Municipal à época instalada nos Pavilhões do Parque, onde encontrei e devorei os estudos de Belard da Fonseca em cinco tomos, os tais que me introduziram de vez n'O Mistério dos Painéis (1957-1967), obra completada pelo polémico D. Henrique? D. Duarte? D. Pedro? (1960).

Na década de 70, instalado em Lisboa, aproveitei muitas manhãs e tardes livres para visitar o Museu das Janelas Verdes e olhar com olhos de ver para todas as obras maiores da cultura portuguesa doutros tempos ou sem tempo no tempo. Olhar para os seis painéis com jogos de olhares, enigmáticos, de quem olha para o indefinido ou se deixa olhar sem olhar para a dupla figura central. Há quem diga que se trata de São Vicente outros do Infante Santo, a rivalizar com um número crescente de hipóteses alternativas, entre as quais a do Rei Dom Duarte, da Rainha Dona Isabel de Coimbra, de São Tiago Menor, da Infanta Dona Catarina, do Cardeal Dom Jaime e até dum Arauto da Era do Espírito Santo. Cada cor seu paladar. Pessoalmente continuo a preferir tratar-se dos irmãos gémeos São Crispim e São Crispiniano, os primeiros padroeiros da cidade de Lisboa. Todavia, a tese predominante nessa altura continuava a ser a Vicentina a debater-se em grande, com unhas e dentes, com a Fernandina. Pelo menos era a ideia com que se ficava, quando se ouvia a interpretação profissional  e convicta dos cicerones de serviço às visitas de grupo. O problema de se tratar dum só políptico e não de dois trípticos parecia estar então resolvida, após os contributos de José de Bragança e Almada Negreiros em proporem essa disposição com base nas leis da perspetiva do olhar, oferecidas pelos ladrilhos que as 60 figuras retratadas pisam.

Decorrido meio século e entrados no .º milénio, continuamos sem saber de fonte segura que pintura é esta para onde olhamos, quem a pintou, de onde veio e para onde ia, que título lhe devemos dar e quem está de facto ali retratado. vontade de esperar pelo resultado final do relatório clínico do mediático restauro atualmente em curso, para decifrar a chave dos mistérios ainda presentes na mais polémica pintura portuguesa de todos os tempos. Aguardar com calma que os acréscimos das anteriores intervenções sejam eliminados e que o resultado final nos devolva de uma vez por todas o seu traçado originalUma certeza, porém, deve ficar no horizonte. Tudo o que se possa ainda dizer sobre as tábuas quatrocentistas, mais não será do que uma mera lucubração, a roçar amiúde a fantasia, sobre o significado da obra-prima monumental de Nuno Gonçalves, ou de João Eanes, ou de ambos ou dum outro qualquer criador anónimo de imagens a duas dimensões, coloridas a óleo e têmpera sobre madeira de carvalho, nascido sabe-se lá bem onde. Entretanto, fixemo-nos nos olhares dos clérigos, pescadores, damas, santos, nobres e cavaleiros. Dir-se-ia que se deixam olhar sem nos olharem de frente. Tristes, sisudos, pesarosos, circunspectos, graves. Que pena não termos a ajuda do Desmond Morris para nos revelar as posturas do corpo na linguagem da arte destas figuras enigmáticas com mais de 500 anos de vida.

17 de julho de 2021

La vache qui guérit

The Cow-Pock—or—the Wonderful Effects of the New Inoculation !
[National Library of Medicine History of Medicine Collection (1802)]

Vacina, s. Do fr. vaccine, este do lat. vaccīna, f. do adj. vaccīnu-, «da vaca, relativo à  vaca»;  trata-
-se de pústulas provocadas na vaca (ou no vitelo) e que inoculadas no homem, produzem a imunidade à varíola; daí, por generalização, substância destinada a inoculação preven-tiva, por formação de anticorpos.
José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1952)

No início do século passado, consta que um médico americano curava alguns dos seus enfermos dando-lhes a comer camembert, um queijo francês de pasta mole e casca aveludada, feito na Normandia com leite cru de vaca. A razão desse resultado devia-se ao Penicillium candidum, um bolor branco que a partir de então se acrescentou ao laticínio original, supostamente criado por Marie Harel por volta da década de 1790, nos tempos conturbados da Revolução Francesa. Essa inovação de fabrico coincide com a descoberta por Sir Alexander Fleming, em 1912, da penicilina no Penicillium notatum.

A 14 de maio de 1796, agora do outro lado do Canal da Mancha, o médico rural inglês Edward Jenner descobriu a primeira vacina capaz de vencer uma das infeções virais mais mortíferas à data. Após ter verificado que os ordenhadores que lidavam com a cowpox, infeção viral causadora de pústulas na ubre das vacas, resistiam à varíola, inoculou uma criança com o pus dum animal contaminado, curando-o ao fim dalgum tempo. Apesar do sucesso então obtido, o resultado foi incapaz de evitar uma resistência generalizada na população e na imprensa coetâneas de desenvolver um plano geral de vacinação.

Então como agora, a oposição às inovações da ciência não se alterou assim tanto. Segue a visão negativista de encarar a realidade, numa tendência insana de recusar a todo o custo as ideias, propostas e solicitações que ameacem o seu ceticismo atávico. Felizmente nunca me identifiquei com essa postura extremada. Acabei de tomar a segunda dose da vacina contra o COVID-19 e as vacas em miniatura ainda não começaram a sair pelos poros mais recônditos do meu corpo. É que, neste megaprocesso de inoculação global, até apetece sorrir ao dizer: La vache qui rit c'est, de même, la vache qui guérit...

Parce que c'est meilleur de rire...

14 de julho de 2021

Amin Maalouf e a visita-relâmpago dos nossos irmãos inesperados

« Les salauds ! les fous ! Ils ont osé faire ça ! Car à l’instant j’écris ces lignes, j’ai des raisons de croire qu’une tragédie vient de se produire. Non pas une calamité naturelle, mais une apocalypse brutale façonnée de main d’homme. Le cafouillage ultime de notre espèce. Qui conclura nos quelques milliers d’années d’histoire. Qui fera tomber le rideau final sur nos vénérables civilisations. Et qui, incidemment, nous fera tous périr. Ce soir même. Ou peut-être demain aux aurores… »
Amin Maalouf, Nos frères inattendus (2020)

livros que mal lhes pegamos os pomos logo de parte, tal o enfado e/ou desconforto que nos causam. Há também aqueles que por mais que nos esforcemos nos deixam completamente indiferentes e incapazes de guardar na memória a sua existência e conteúdo. Há ainda aqueles que felizmente mexem connosco desde a frase inicial à derradeira. O que se diz dos livros lidos pelos leitores severos pode também dizer-se dos livros escritos pelos autores eleitos, aqueles que nos enchem as medidas e que nunca nos cansamos de visitar. Amin Maalouf, o ocupante da poltrona 29 da Académie française, pertence a este número reduzido dos meus criadores diletos. Conheci-o por acaso no romance e adotei-o de seguida no ensaio. O último título publicado, Nos frères inattendus (2020)  à espera duma tradução portuguesa filia-se no cruzamento da ficção novelesca e do pensamento reflexivo, apanágio que, de certo modo, o tem acompanhado ao longo de todo a percurso literário. Volta a recorrer à componente distópica após uma primeira investida no Le premier siècle après Béatrice (1992), onde a configuração dum mundo possível diferente do nosso é abordado, muito embora o problema da natalidade seletiva do mais antigo seja substituído pelo problema do naufrágio das civilizações do mais recente.

Um dos elementos-chave responsáveis pela minha adesão imediata ao estilo inebriante deste pensador líbio-francês reside no modo singular como encara as dialéticas dos tempos, sobretudo no seu relacionamento conflituoso entre os vários blocos civilizacionais que foram desenhando a pouco e pouco os dias de hoje. A procura de diálogo entre o Oriente e o Ocidente, entre os vários povos da cultura monoteísta do Livro, entre a luz e as trevas. Nesta mais recente abordagem do mundo atual, recorre ao contributo grego antigo, ao designado milagre ateniense, o momento grandioso em que o espírito criador humano inventou o teatro, a filosofia, a medicina, a história, a escultura, a arquitetura e a democracia. Os obreiros cabais das artes, ciência e pensamento, que a Idade Média abafou e os irmãos reencontradosfilhos secretos de Sócrates, Platão, Eurípedes, Heródoto, Hipócrates, Fídias, Aristóteles e muitos mais  tentaram restaurar na Idade Moderna. Os anais e os mitos aliaram-se à fábula, num ato de grande cumplicidade com a utopia, o tal mundo paralelo referido no texto, tal como o  Eco no Sobre os espelhos e outros ensaios*, instituindo um braço de força pacífico e sem tréguas entre a eutopia ideal e a distopia real.

A visita efémera dos nossos irmãos inesperados teve uma duração fugaz de 20 dias. Os amigos de Empédocles chegaram, dominaram, espalharam um sopro de angústia e de esperança sobre o mundo. Depois partiram sem avisar. Estiveram entre nós de 9 de novembro (terça-feira) a 9 de dezembro (quinta-feira), talvez de 2021, por distar 50 anos da aprovação da 25.ª emenda da constituição do EUA (1967) e se conjugar com os dias da semana apontados no diário do protagonista-cronista, i.e., num futuro perto da publicação da obra e da data em que a li. Esses salvadores/predadores com nomes gregos significativos  Agamémnom, Demóstenes, Pausânias, Electra , vindos não se sabe donde no tecido espácio-temporal, detentores de poderes inexplicáveis à luz dos conhecimentos atuais, capazes de evitar uma catástrofe nuclear travada a nível global ou de poder prolongar a vida para além dos limites da morte, espalham-se um pouco por todo o lado à escala planetária, apesar da ação se centrar na minúscula Antioquia, uma das quatro ilhas fictícias do arquipélago Les Chirons, atravessado pela corrente do Golfo, no Atlântico Norte, provavelmente situado nas imediações das costas setentrionais da Noruega ou das Cornualhas, por decorrer em pleno inverno à distância de seis fusos horários de Washington.

À medida que a leitura prossegue, aprendi a gostar das personagens, a sentir o que elas sentem, a sentir a sua falta quando o final do relato se vislumbra no horizonte. Assim se passa com Alexandre e Ève, os protagonistas reportados pelo primeiro em quatro cadernos Neblinas, Abertas, Ancoragens e Eclipses , conhecido no meio artístico dos cartoons jornalísticos como Alec Zander, e pela sua única vizinha insular, a autora do romance de culto premonitório L'avenir n'habite plus à cette adresse, narrado pela lendária Lilith no hebraico Talmude de Babilónia. Depois há Moro, o amigo do desenhador-relator e conselheiro do presidente americano Milton. A escolha destes antropónimos, associados aos criadores de duas obras maiores da literatura ocidental, a Utopia de Thomas Morus e o Paraíso Perdido de John Milton, não me deixaram indiferente à trama em que dois modelos civilizacionais edénicos se confrontam, pondo em risco a sobrevivência das duas. A menos que ambas estejam de acordo em abrir uma nova página entre uma e outra. De eleger como única inimiga a morte, de a fazer recuar através da sabedoria e do conhecimento até ao final dos tempos, viabilizando assim a aliança dos dois ramos da humanidade com a vida, livre da doença e do envelhecimento, a união eterna dos irmãos inesperados e dos irmãos reencontrados.

NOTA
Umberto ECO, «Os mundos da ficção científica», IN Sobre os espelhos e outros ensaios. [1985]. Lisboa: Difel, 1989.